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Opinião pública e opinião publicada

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Por Gaudêncio Torquato
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O desabafo do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS) ao dizer que se "lixava" para a opinião pública, sob o argumento de que denúncias da imprensa não atrapalham a reeleição de parlamentares, descortina um colorido painel sobre três vetores de nossa democracia: os políticos, a opinião pública e a mídia. A polêmica frase pronunciada pelo ex-relator do processo contra o deputado Edmar Moreira dá a entender que há um enorme descompasso entre a representação política e a sociedade e ainda expressa a noção de que a mídia não reflete o sentimento da opinião pública. O compreensível furor provocado pela manifestação parte da hipótese de que, se a opinião pública reflete a visão da sociedade - posições, juízos e impressões a respeito de fatos, coisas, pessoas, instituições -, e se um detentor de mandato popular deve encarnar o ideário social, não tem o direito de falar com tamanho escárnio, sob pena de ser levado às barras da execração pública. Emoções à parte, há um pote de verdades na estocada do parlamentar gaúcho. Convém esclarecer, primeiro, que, se a opinião pública foi usada como sinônimo de povo, população, eleitorado, diferente da expressão que assume na ciência política, mas comumente adotada por diferentes atores institucionais, não há por que discordar da versão de Moraes. Se a temperatura social é aferida por medição demográfica, objeto de pesquisas, não é necessário esforço para se concluir que os maiores contingentes sociais não distinguem entre bons e maus políticos, posicionam-se a favor de candidatos paroquiais, nivelando a escolha pela régua de interesses imediatos. Prova cabal disso é a eleição de políticos que passaram bom tempo sob o bombardeio de denúncias, inclusive os citados no escândalo do mensalão. Severino Cavalcanti, após uma trovoada de denúncias, foi consagrado prefeito de João Alfredo (PE). Sob essa perspectiva, a maioria das pessoas, indagada a respeito de aspectos éticos de deputados ("estou me lixando"), poderia sair-se com esta: "Não sei do que se trata. E quer saber? Todos os políticos são farinha do mesmo saco." As concepções no seio da coletividade inserem os representantes em compartimentos diferentes. Infere-se, daí, não haver opinião pública unânime e que esta não significa, necessariamente, a opinião da maioria, mas a soma das visões de todos os grupamentos. Quem garante que um ponto de vista é majoritário na sociedade deverá demonstrar isso com pesquisas. E aqui aparece o conceito de opinião publicada, manifestação exposta e disponível para todos. Nesta esfera trabalham os agentes da indústria da informação, dentre os quais assumem posição de relevo os formadores de opinião, incluindo as fontes especializadas, os olimpianos da cultura de massa (artistas e celebridades do mundo das artes e dos espetáculos) e analistas do cenário político-institucional. As visões dos habitantes deste planeta costumam ser interpretadas como o eco mais retumbante da opinião pública. E mais: alguns membros desse clube se gabam da onipotência. Para eles, a realidade é a extensão de seus olhos. Sem chegar a esta firula conceitual, o deputado que escorraça a opinião pública atirou no que viu e acertou o que não viu. Ele atingiu a opinião publicada, que quer ocupar o lugar da opinião pública. Há muita escamoteação e hipocrisia quando se fala sobre esses conceitos. Como se sabe, a opinião publicada quer influenciar a opinião pública. Em 1922, Walter Lippmann já alertava: "Fabricar consentimento, pela velha arte da manipulação da opinião pública, não morreu com a democracia, como se supunha." Frequentemente se confunde a parte com o todo, a visão de poucos com o sentimento de muitos, a opinião particular com a opinião pública. O território da política é, por excelência, o que se presta às maiores dissensões. Populações marginalizadas, grupamentos centrais e elites têm opiniões diferentes sobre ética e moral na política. Dentro de cada núcleo há concepções também divergentes, de acordo com a geografia eleitoral, as culturas regionais e os padrões do mandonismo. Esse caldo cultural permite dizer que Sérgio Moraes se lixa - isso sim - para a opinião publicada, não para a opinião pública. Os eleitores que o elegem, como outros milhares espalhados pelos 27 Estados da Federação, devem ser refratários ao escopo da imprensa. Seu gosto se volta mais para mídias diversionais e emotivas, como rádio e TV, canais que dão ressonância a conteúdos catárticos. O caso da menina Isabella Nardoni, morta em março do ano passado, continua presente no cotidiano das pessoas. Já os escândalos envolvendo políticos, mesmo sob os holofotes midiáticos, caem nas molas do amortecimento social. Tornam-se banais. Geram descrença. "Ruim por ruim, vote em mim." Este slogan fictício acaba ganhando o eleitor. O "ruim" pode ser aquele candidato próximo, que fez alguma coisa pela cidade. O deputado Moraes cabe inteiro nessa foto. Como outros colegas, considera jornal refugo para empacotar frutas e verduras na feira, com destino no cesto de lixo. Mesmo que seu voto seja de um dos Estados de maior taxa de cívica do País, o Rio Grande do Sul, ele garante que seu rebanho não dá valor à opinião publicada. Só resta esperar pelo veredicto das urnas para comprovar em definitivo a sua tese. Falta acrescentar que a política respira o ar do tempo. Não é um sistema aprisionado. E o ar da política nacional, seja o que provém da seca no Sul ou das enchentes no Nordeste, impregna-se de uma ventania forte, sob o empuxo de uma miríade de organizações sociais. Este é o fenômeno novo que não entra na cachola dos políticos da velha guarda. Não tardará para que o voto se banhe com o oxigênio extraído do universo organizativo. Nesse novo ciclo, figuras como Moraes não terão alternativa senão adotar o conselho de Lincoln: "É preciso mergulhar na opinião pública como num banho." Haverá um tempo em que opinião pública e opinião publicada serão irmãs siamesas. Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação