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Opinião|Os 40 anos de uma universidade vencedora

Atualização:

A universidade é uma instituição sui generis. Nasce e cresce sobre uma base física, mas retira força da dimensão imaterial, simbólica. É impulsionada por docentes, estudantes, servidores técnicos e administrativos. Organiza-se para produzir conhecimentos e formar intelectuais. Não vende produtos. Dialoga com sua época, com a História da humanidade, com a sociedade em que está inserida, com seus jovens e suas famílias. Não pode proceder como se fosse uma empresa, uma organização qualquer.

Nenhuma universidade prescinde dos elementos de cultura que carrega consigo. A cultura acadêmica fornece a moldura geral e dentro dela cada universidade compõe seus valores, seu modo de agir, administrar, decidir, pesquisar e ensinar. Forma assim sua identidade, sua personalidade institucional. Quanto mais forte for nessa dimensão, mais combustível e referências terá a universidade para se consolidar no circuito da pesquisa e do ensino superior.

A época em que vivemos é paradoxal: impulsiona e exige ao mesmo tempo que trava e dificulta a formação de boas culturas universitárias, especialmente naqueles países que começaram a aventura acadêmica em tempos mais recentes, como é o caso do Brasil. Nisso eles não beneficiados pelas “vantagens do atraso”. O gap a ser superado é enorme, as demandas sociais se acumulam, os recursos escasseiam, a necessidade de fazer ciência acelera os passos, às vezes de forma precipitada. Por outro lado, as marcas da época cobram um preço. São tantos os interesses, tamanho o desejo de autonomia das partes, tanto os obstáculos que as instituições se ressentem da falta de empuxo para a construção coletiva. Tendem a virar arquipélagos, com ilhas que pouco se comunicam entre si e carregam dentro delas múltiplos focos de interesse que competem entre si.

As melhores instituições de ensino superior são as que conseguem conviver com essa miríade de partes e fixar um projeto consistente e agregador. Podem fazer isso se valendo das tradições que trazem consigo – o que beneficia as universidades mais antigas –, do prestígio científico acumulado, de uma imagem pública positiva. Para falar de maneira mais rude, podem se apoiar no marketing e numa agressiva política de incentivos (materiais, salariais, simbólicos, políticos), que favorecem a formação de um espírito de corpo de caráter defensivo.

A Universidade Estadual Paulista (Unesp), que completa 40 anos de vida em 2016, é uma universidade jovem e ainda mais sui generis que suas coirmãs, a USP e a Unicamp. Formada pela reunião de diversos institutos isolados que existiam no interior de São Paulo, conviveu desde o nascimento com a superposição e o entrelaçamento de culturas particulares, diferentes modos de ver o mundo e de “ser universidade”. Cursos duplicados, faculdades e departamentos que concorriam uns com os outros, distâncias enormes entre os câmpus, uma reitoria forçada a se hipertrofiar, custos operacionais elevadíssimos – tudo levava a que a Unesp, em seus anos iniciais, fosse vista com desconfiança e inferioridade. Sua primeira década de vida, sobretudo, foi vivida em clima muito mais de ceticismo que de entusiasmo.

Quatro décadas depois, isso é história. A Unesp venceu o desafio que lhe foi anteposto em 1976, na abertura de sua fase heroica. Suas forças internas – professores, servidores, estudantes – abraçaram com generosidade a construção institucional, chegando mesmo a abrir mão de alguns ganhos em termos de prestígio e carreira. As comunidades dos municípios que sediaram as faculdades ajudaram a fortalecer a “sua” universidade, que virou realidade.

Hoje, aos 40 anos, a Unesp é uma instituição madura, que sabe o que quer e o que pode querer. São 4 mil professores, 7 mil servidores, 50 mil estudantes, 134 cursos de graduação, um encorpado e bem avaliado sistema de pesquisa e pós-graduação, 34 faculdades implantadas em 24 cidades de São Paulo, uma editora pujante e de qualidade incontestável. Sua folha de serviços e realizações impressiona, fornece uma ponte para o futuro.

Dificuldades e obstáculos, porém, não desapareceram. Muito ao contrário: cresceram, ficaram mais complicados e desafiadores. Estão aí as restrições financeiras, a ausência de uma boa política pública de ensino superior em São Paulo, as novas bases da competição interna e interinstitucional, as pressões para que o ensino se adapte a uma era de inovação contínua, “vida líquida” e conectividade intensiva, para que a sala de aula seja reconfigurada como espaço de interações dialógicas permanentes, as exigências e expectativas em termos de produção científica, a necessidade real de que se equacione com inteligência a questão da mobilidade e da internacionalização.

Perante as instituições acadêmicas e, portanto, perante a Unesp, ergue-se o problema de saber de que universidade precisa o século 21. Como compatibilizar, na prática cotidiana e no formato institucional das universidades, as gigantescas expectativas sociais, as pressões do mercado, os princípios da educação superior e o rigor da ciência? Como dialogar e entrar em conexão ativa com uma sociedade que se fragmenta e se diversifica sem cessar?

A ausência de consensos, as reivindicações intermináveis, o desentendimento entre governos e universidades, a exasperação e a superficialidade com que se discutem os problemas são só a ponta do iceberg: anunciam um quadro de confusão filosófica, de problematização de identidades, de estupor perante um futuro cada vez mais embaçado.

Tudo ajuda a produzir conflitos de interesses, fragmentação e focos de tensão com potência suficiente para travar o todo. E tudo, ao mesmo tempo, instiga e dinamiza.

São desafios que estão postos para todas as grandes instituições de ensino superior. Honrando o que acumulou ao longo de seus 40 anos, a Unesp tem plenas condições de enfrentá-los e de permanecer crescendo com altivez, qualidade e senso cívico. Longa vida a ela.

* MARCO AURÉLIO NOGUEIRA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIONAIS DA UNESP

Opinião por MARCO AURÉLIO NOGUEIRA