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Opinião|Os acordos de leniência perpetuam a corrupção

Atualização:

“Me disseram que vai. Dentro da leniência botaram outras pessoas, executivos para falar. Agora, meu trato com essas empresas, Renan, é com os donos. Quer dizer, se botarem, vai dar uma m… geral, eu nunca falei com executivo” (Sérgio Machado)

A epígrafe que inaugura um texto é, sempre, de autoria de um poeta, de um cientista, de um filósofo, de um grande romancista. Ocorre que o epigrafado que emoldura este artigo não pertence a essa grei. Trata-se do notório Sérgio Machado, que, por mais de uma década, no bojo do triunfante governo lulopetista, presidiu a malograda Transpetro, aproveitando as horas vagas para distribuir milhões em propinas para ele próprio, para os políticos da “base” do poder e seus respectivos partidos. Uma figura que se notabiliza não só por seu papel decisivo na canibalização do conglomerado Petrobrás, mas pela traição que praticou contra seus mais fiéis amigos e protetores, os estadistas Sarney, Renan e Jucá.

Mas das deprimentes gravações surge uma afirmação do delator, em diálogo com o presidente do Senado, que confirma o óbvio: as tratativas e a consumação dos esquemas de corrupção dão-se diretamente entre os donos das empreiteiras e os altos funcionários do governo e das estatais.

São, com efeito, os líderes das famílias proprietárias das empreiteiras que, pessoal e diretamente, promovem e mantêm a interlocução com os presidentes da República e seus ministros, os altos funcionários, os diretores das estatais, os governadores e os prefeitos.

As grandes empreiteiras são empresas fechadas, cujos donos são as famílias que as constituíram, algumas há mais de 80 anos. As sucessivas gerações desses tradicionais núcleos familiares germinaram uma irremovível cultura corruptiva. Não sabem esses donos das empreiteiras contratar com o poder público a não ser corrompendo e, gostosamente, sendo corrompidas pelos nossos insaciáveis governantes e altos funcionários.

Foi nesse ambiente sedimentado e consolidado de relações criminosas que o governo lulopetista estruturou-se para a realização do seu projeto de poder hegemônico. E esses donos das empreiteiras – a que se refere o delator Machado –, com pouquíssimas exceções, não pertencem aos quadros da administração das suas companhias (conselho e diretoria), refugiando-se em holdings verticais que os colocam bem à distância de qualquer responsabilidade pessoal sobre a conduta corrupta da pessoa jurídica, de que são os reais proprietários. São os diretores contratados, seus gerentes e funcionários que sofrem as sanções no caso de serem desvendados os delitos de corrupção praticados pela empreiteira.

Em face desse quadro de sobreposição dos donos sobre a própria organização empresarial, de nada adianta esta história de acordos de leniência, em virtude do qual a empresa corrupta se compromete a instituir um regime de conformidade estrita às melhores práticas e condutas internas e, com isso, poder continuar contratando obras com o poder público.

A propósito, todas as empresas envolvidas na Operação Lava Jato têm, há vários anos, regras sofisticadas de compliance. Algumas, inclusive, compõem o seleto grupo da Ética Pública, constituído há mais de dez anos pela Advocacia-Geral da União em convênio com o respeitável Instituto Ethos. A própria Petrobrás há muitos anos instaurou um “rigoroso” regime de compliance, traduzido num Código de mais de 300 páginas.

Daí a perniciosa inutilidade do regime de compliance para regenerar e reeducar as empreiteiras, pois quem opera o sistema de corrupção são os seus donos, do lado de fora da organização, portanto. E o corrupto é o um delinquente irremissível. Quem o afirma é o nosso papa Francisco, que, não obstante sua profunda pregação da misericórdia e do perdão, energicamente recusa esta última graça aos corruptos. São suas palavras: “O pecado se perdoa, a corrupção não pode ser perdoada. Pecador sim, corrupto não” (J. M. Bergoglio, Guarire dalla corruzione, Bolonha, 2013).

Não obstante, as empreiteiras poderão continuar a contratar obras públicas contanto que subscrevam um acordo de leniência por meio do qual juram que irão se emendar e que jamais no futuro voltarão à prática da corrupção (?!).

Suprema ironia. Antes da Lava Jato, prevaleciam as leis que suspendem as empreiteiras sob investigação da execução de obras em andamento e de licitarem novas. No governo petista, em virtude da proteção escandalosa às empreiteiras – sob o falso pretexto de preservação da empresa, dos empregos e da sua função social –, todas as companhias corruptas, sob o telecomando de seus donos, continuaram a operar livremente no setor público.

Os acordos de leniência, que agora quer-se consagrar numa nova lei, nada mais é que a ratificação desse procedimento que leva à plena continuidade da corrupção nas relações contratuais do setor público com o privado.

No Brasil, a despeito do extraordinário trabalho desenvolvido pela Lava Jato, teremos o mesmo fenômeno que ocorreu na Itália, após a Operação Mãos Limpas. Por terem os juízes de lá protegido as empresas corruptas, o resultado daquele esforço histórico foi zero. A corrupção aumentou ainda mais nas duas décadas seguintes, sendo hoje a Itália – fundadora da União Europeia – a artista convidada em todas as análises sobre o tema.

De acordo com a Lei Anticorrupção, o acordo de leniência só pode ser feito com a primeira empreiteira que denuncie o cartel ou os delitos praticados no seio do consórcio de obras. Não pode haver acordos de leniência para a generalidade das empreiteiras corruptas. E para nenhuma delas pode haver a franquia de contratar com o poder público. Todas devem cumprir um quinquênio de suspensão e de inabilitação para licitar e contratar obras públicas.

Se houver a anistia ampla e geral das empreiteiras corruptas, os efeitos atuais e futuros da nossa exemplar Operação Lava Jato serão nulos. A corrupção continuará prevalecendo nas obras e serviços prestados ao Estado.

*Modesto Carvalhosa é jurista e autor, entre outros livros, de 'Considerações sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas' e 'O Livro Negro da Corrupção'

Opinião por Modesto Carvalhosa