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Os bens que a prescrição protege

As “Dez Medidas Anticorrupção” – conjunto de propostas do Ministério Público Federal (MPF) para reforma da legislação penal – receberam ampla adesão popular

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Por Redação
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As “Dez Medidas Anticorrupção” – conjunto de propostas do Ministério Público Federal (MPF) para reforma da legislação penal – receberam ampla adesão popular. Foram mais de 2 milhões de assinaturas de apoio, o que possibilitou sua apresentação ao Congresso Nacional com o caráter de projeto de lei de iniciativa popular. Indignada com os altos índices de impunidade vigentes no País, a população dá contínuas mostras de que apoiará toda e qualquer medida capaz de contribuir com a melhora da moralidade pública. Esse apoio popular é extremamente positivo e dá ao Congresso as condições ideais para pensar possíveis alterações da legislação penal. Já não cabe a nenhum parlamentar ter qualquer tipo de dúvida a respeito dos anseios da sociedade, que aspira por um país menos corrupto e menos impune. Esse quadro, no entanto, não exclui a grave responsabilidade que tem o Parlamento de ponderar serenamente a conveniência de cada medida que faz parte do pacote, que tem sofrido alterações na Comissão Especial. Nem tudo o que lá está é positivo para o País, e suas inconveniências não se restringem ao uso da prova ilícita ou ao teste de integridade do servidor público. Uma das propostas do MPF a exigir cuidadosa análise é a sexta medida, que trata da “reforma no sistema de prescrição penal”. O MPF propõe o aumento de vários prazos prescricionais, além da previsão de mais causas de interrupção para a contagem desse prazo. Deseja, assim, em tese, aumentar as chances de o Estado punir crimes cometidos, ganhando mais tempo para investigar denúncias e executar penas. Pode ser oportuno rever o equilíbrio dos prazos prescricionais. Mas a proposta do MPF não é um simples ajuste de eventuais desequilíbrios. Ela trata o instituto da prescrição como se ele fosse necessariamente um aliado da impunidade – e isso é falso. É bom, é necessário e é justo que os crimes prescrevam. Em primeiro lugar, a prescrição é um poderoso estímulo a que o Estado cumpra diligentemente seu dever de investigar crimes e julgar réus. Caso não houvesse prescrição – ou os prazos fossem tão longos que, na prática, não impelissem o poder público a agir –, muitos crimes ficariam sem solução, já que quanto mais se tarda para investigar, mais remota é a chance de encontrar as provas necessárias para instruir adequadamente o processo penal. A prescrição é também uma eficaz garantia da sociedade e dos indivíduos frente ao Estado. Basta pensar que, caso não existissem prazos para a duração do inquérito ou do processo penal – o que, na prática, é a aspiração do MPF com sua sexta proposta anticorrupção –, as pessoas poderiam ficar a vida inteira na condição de investigado ou de réu, sujeitas aos graves inconvenientes e prejuízos que essa situação comporta. Seria uma arbitrariedade incompatível com um Estado Democrático de Direito. A proposta do MPF sobre a prescrição é um exemplo cristalino de como uma boa intenção – combater a impunidade – pode ser contraproducente, se desacompanhada do necessário equilíbrio. É um equívoco tratar a prescrição de forma simplista, como se ela apenas favorecesse a impunidade. Ela protege importantes bens sociais, a começar por exigir do Estado diligência em seu dever de investigar e punir os crimes. O grave problema da impunidade não é fruto exclusivo de uma inadequada legislação penal, como se bastasse enrijecer a lei para que a impunidade diminuísse. Há várias causas, muitas delas diretamente relacionadas ao modo como o poder público trabalha. Como disse o jornalista e crítico social americano Henry Louis Mencken, para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada. Talvez seja exagero dizer que o MPF está completamente errado, mas é preciso reconhecer boa dose de exagero no tom em que o MPF tenta impor algumas de suas propostas. Em entrevista ontem à Rádio Estadão, o procurador Deltan Dallagnol falava que a aprovação das medidas “será uma revolução no combate à corrupção”. Às vezes, um pouco de dúvida é extremamente salutar.