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Os perigos da percepção

Em tempos de “pós-verdade”, quando convicções se sobrepõem aos fatos, torna-se ainda mais vital o papel da imprensa livre como fiel mediadora do debate público

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Por Redação
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No ano passado, a Oxford Dictionaries elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano em língua inglesa. Embora já fosse conhecido desde 1992 – quando o dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich o empregou pela primeira vez em artigo na revista The Nation –, somente em 2016 o termo ganhou espaço central no debate público. O departamento da Universidade de Oxford responsável pela edição dos dicionários definiu como “pós-verdade” aquilo que “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Em outras palavras, trata-se de uma subversão do conceito basilar de Descartes: “Acredito, logo estou certo”. Uma pesquisa realizada pelo instituto Ipsos Mori constatou precisamente esse predomínio da percepção sobre o conhecimento da realidade na formação da opinião pública. Durante um mês e meio – entre o fim de setembro e o início de novembro do ano passado –, os pesquisadores ouviram 27.250 pessoas em 40 países. Intitulada Os perigos da percepção, a pesquisa revelou quão equivocadas as pessoas estão a respeito da própria realidade em que vivem. Na maioria dos países, os pesquisados mostraram-se dissociados do pensamento médio de seus concidadãos em questões centrais como religião, aborto, homossexualidade, felicidade e distribuição de renda. As discrepâncias entre percepção e realidade foram tais que levaram o instituto a criar o “Índice Ipsos de Ignorância”. A partir de cinco questões amparadas por dados factuais, o Ipsos Mori avaliou quão acuradas eram as percepções dos pesquisados nos 40 países. Destes, o Brasil ocupa a sexta posição no ranking das nações mais ignorantes, ou seja, onde a percepção dos cidadãos é bastante dissociada da realidade. O País perde apenas para os Estados Unidos, África do Sul, Taiwan, China e Índia. Em posição oposta, Malásia, República Checa, Coreia do Sul, Grã-Bretanha e Holanda são os países onde se observam as menores variações porcentuais entre percepção e realidade. Quando perguntados sobre o estado de felicidade, por exemplo, os cidadãos de todos os países pesquisados revelaram algum grau de distanciamento entre suas percepções e os dados apresentados por pesquisas sobre o tema conduzidas pelo Pew Research Center. Os brasileiros entrevistados pensam que 40% de seus concidadãos respondem que são felizes quando questionados por um pesquisador, quando, na verdade, este índice é de 92%. A tendência neste campo, em maior ou menor grau, é repetida nas outras nações pesquisadas. Em geral, as pessoas tendem a pensar que a população de seus países é mais infeliz do que ela realmente é. Sobre a homossexualidade, a pesquisa revelou que a maioria dos países é mais tolerante do que pensam os cidadãos ouvidos pelo Ipsos Mori. Os brasileiros responderam que 51% da população considera a homossexualidade um desvio moral, quando – segundo dados do Pew Research Center – 39% pensam desta forma. Tendência inversa é observada em relação ao aborto. Os brasileiros estimaram em 61% a parcela da população que classifica o aborto como uma prática moralmente inaceitável, quando, na verdade, este índice é de 79%. Outro dado curioso trazido pela pesquisa diz respeito à distribuição de renda. Quase todos os países pesquisados pensam que a riqueza é mais bem distribuída entre os cidadãos do que ela realmente é. No Brasil, esta é a percepção de 24% da população pesquisada, quando – ainda segundo os dados do Pew Research Center – 9% é o dado correto. Para qualquer governo, a vida é sempre mais fácil quando a opinião pública é formada a partir de percepções favoráveis. Mas as percepções, ao contrário da realidade, podem ser direcionadas. Eis o perigo. Em tempos de “pós-verdade”, quando convicções se sobrepõem aos fatos, torna-se ainda mais vital o papel da imprensa livre como fiel mediadora – e provedora de informações verídicas e opiniões bem fundamentadas – do debate público.