Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|País em crise

O ideal seria iniciar a solução pela política: uma vez nos trilhos, rebocaria tudo o mais

Atualização:

O Brasil vive em clima de crise. Manifestação grave desse clima vem sendo o desapreço generalizado pela lei e pela ordem, do delito banal, do atravessar a rua fora da faixa de pedestres, à rotina de insegurança pública, à violência e à criminalidade epidêmicas, à corrupção no poder público dos três níveis da Federação, à sonegação de impostos – seria inviável citar aqui toda a lista de irregularidades que contaminam a vida nacional.

O despautério multifacetado atinge toda a pirâmide social, de conformidade com a interpretação flexível do que está certo ou errado e com a sensação de impunidade, dos cidadãos em seus vários estratos. Atinge o mundo político, que vem merecendo atenção crítica cotidiana; o capital, beneficiário de, no mínimo, discutíveis vantagens em suas relações com o Estado; o trabalho, em destaque hoje o serviço público (direto, indireto ou concedido), praticante de greves descomprometidas com a realidade nacional. E atinge fortemente a classe média, acusadora costumeira do topo e da base da pirâmide, como se ela própria vivesse em estado de virtude que a credenciasse à acusação.

Fatos e circunstâncias recentes vêm exponenciando esse descalabro. Mas seu alicerce psicossocial está no caráter coletivo brasileiro, construído leniente ao longo de nosso passado político, econômico e étnico-cultural. Essa herança pouco virtuosa (sejamos complacentes) da estrutura mental do povo foi agravada pelo vertiginoso aumento da população, de 40 milhões para 200 milhões de brasileiros dos anos 1930 aos 2010, e pela substituição do velho modelo patriarcal rural pela urbanização desenfreada e desordenada, mal atendidos na educação e em outros encargos sociais do Estado, com consequências deletérias sobre o caráter coletivo. 

Deixamos de ser um país rural para ser um país urbano e industrializado, com a substituição da ordem semifeudal rural pela leniência comportamental da grande massa urbana e pelo populismo político que dela se aproveita. O crime no varejo ocasional, nas grandes extensões rurais, foi substituído pela violência e pela criminalidade urbana no atacado – em todo lugar e a qualquer hora –, os bandos rurais dos Virgulinos Lampiões foram substituídos pelas quadrilhas urbanas dos Fernandinhos Beira-Mar e pelas milícias também quadrilhas. Os esquemas concentradores de renda do modelo mercantilista agroexportador foram substituídos pelos conluios envolvendo o grande capital, o Estado e a elite política no poder. E por aí vai, um caleidoscópio viciado que frequentemente surpreende com novas modalidades de crimes e outros delitos.

No tocante essencialmente à insegurança pública, síndrome hoje presente, com justa razão, no cotidiano de toda a sociedade, seus atores mais frequentes são, de fato, da periferia social desamparada – e/ou hoje desempregada. Mas esse estrato social, fragilizado pela assistência precária do Estado, é estimulado à desordem, à violência e ao crime pela frenética publicidade do modelo de vida que desqualifica a cidadania de quem não tem carro ou moto, computador, TV da última geração, trânsito na internet e pelo menos dois celulares multifuncionais modernos – enfim, “necessidades” que, rigorosamente, não necessitamos. A violência e a criminalidade se alastram como instrumento de satisfação desse paradigma psicótico. Assalto a padaria raramente visa a roubar pão para matar a fome da família, visa é a tomar o dinheiro do caixa para atender à demanda das necessidades desnecessárias.

A mídia não é imune a essa dinâmica – sobretudo a televisão. A par de programas até bem construídos, são apresentados – por mais tempo e em horários nobres – programas de frágil (se tanto...) padrão cultural, moral e até estético, interrompidos por frequente publicidade geralmente de mau gosto, se não agressiva à inteligência do espectador. Liga-se a TV para assistir a qualidade e o que ela nos oferece (ao menos mais frequentemente) são programas medíocres ou notícias que, quando de interesse limitado pelo padrão cultural do espectador, são apresentadas em geral rapidamente; já as susceptíveis de sensacionalismo vulgar são repetidas monótona e espetaculosamente. É a programação respondendo ao caráter coletivo, em vez de aprimorá-lo.

Em suma, vivemos hoje um clima em que o delito, a delinquência, a violência e a criminalidade de toda ordem estão praticamente assimilados ou são vistos com complacência, quando não com algum vínculo de cumplicidade, por grande parte da sociedade. A crítica habitual do povo às ações do sistema policial na segurança pública (por vezes até justa) é reflexo do caráter coletivo, propenso a estigmatizar a autoridade legal responsável pela manutenção da ordem, interpretada de forma variada em função da estrutura mental e do interesse de cada um. A tendência das classes alta e média alta de acusarem a média baixa e a baixa é preconceituosa: na moldura de seus padrões comportamentais “flexíveis” e de suas sensações de impunidade, elas também participam do despautério generalizado, praticam-no ou são tolerantes e conformadas com ele, com o vale-tudo, do furar o sinal vermelho à propina política, ao conluio viciado capital-Estado. Nem o futebol escapa...

A correção desse quadro será difícil e demorada. Não se trata apenas de ajuste fiscal, controle da inflação e dos juros, revisão saneadora da Previdência Social, da saúde, da educação, do sistema político-eleitoral e outras medidas de correção setorial. Para a normalidade de longo prazo há que redimir o caráter coletivo de grande parte da sociedade brasileira, da sua vulnerabilidade – histórica, mas acentuada recentemente – à permissividade, à conformidade e até à cumplicidade com o descaso pela lei e pela ordem. E isso não é factível de um dia para o outro.

O ideal seria iniciar a solução pela política, que, uma vez nos trilhos da qualidade, rebocará tudo o mais. Será possível?

Opinião por Mario Cesar Flores