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Para que serve um código de ética?

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Por Eugênio Bucci
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Em 2005, uma avalanche de escândalos soterrou o Partido dos Trabalhadores (PT) e estilhaçou sua imagem. Foi um festival macabro de malversações, ainda hoje insuperado no quesito originalidade. De emissários de parlamentares retirando dinheiro vivíssimo numa agência bancária de Brasília até o transporte de maços de dólares na cueca, praticou-se todo tipo de, com o perdão do neologismo, "eticídios". Logo em seguida, alguns militantes da legenda, ainda atordoados, lançaram uma proposta: o partido deveria adotar um código de conduta. Naqueles dias, pareceu um mecanismo de fuga. Um código? Só isso? De que adiantaria escrever normas para proibir o que qualquer homem de bem já sabia ser inaceitável desde sempre? Por que é que o partido não tomava de uma vez a resolução de processar, com base nas leis já existentes, os responsáveis pelos ilícitos? Por que protegê-los a sete chaves e desviar a discussão para abstrações deontológicas? Bem, o tempo passou, pouca gente foi punida pelo PT, mas os propositores do código não desistiram, como se soubessem que, além daquela, nenhuma outra ação profilática iria prosperar nas instâncias partidárias. Em 2007, conseguiram que o Terceiro Congresso Nacional do PT autorizasse a ideia. Depois, uma comissão coordenada pelo deputado federal por São Paulo José Eduardo Cardozo, também secretário-geral da sigla, redigiu os 73 artigos. Em junho passado, o texto foi aprovado pelo Diretório Nacional. Agora, no dia 1º de agosto, quatro anos depois da chamada "crise do mensalão", o Código de Ética do PT entra em vigor. Para muitos, tudo não passa de jogo de cena. Mas não é só isso. Há virtude na iniciativa. Certamente, o novo código, sozinho, não vai mudar a política pátria nem a cabeça dos chefes do PT. Ele tem erros de estilo (como a expressão "quorum mínimo", no artigo 7º, inciso XV, ou uma vírgula separando sujeito e predicado no artigo 44), além de pontos obscuros, como o que vou apontar ao final deste artigo. Mesmo assim, deve ser reconhecido como fator de esclarecimento. É educativo. Ao enaltecer valores da ética pública, expõe contradições correntes na nossa cultura política: de um lado, está o "dever ser" com o qual todos dizem concordar; de outro, a vida como ela é, expressa no pragmatismo dos caciques. Fiquemos com apenas um exemplo dessas contradições, a que se expressa, hoje, na agonia do Senado Federal. Há um choque nítido entre a orientação do código, que manda os integrantes do partido combaterem o nepotismo (artigo 14, inciso X) e o clientelismo (artigo 3º, inciso IV), e a orientação de petistas históricos, que preferem, em nome de uma CPI ou das eleições do ano que vem, fazer vista grossa para os velhos vícios. Entre princípios e conveniências, quem fica do lado certo? De algumas semanas para cá, a bancada de senadores petistas vem propondo o afastamento do presidente do Senado, não como forma de desgastá-lo ou de puni-lo, mas para que melhor se apurem as denúncias que pesam contra ele. Denúncias que se referem, notadamente, à prática de clientelismo e de nepotismo. Aliás, a julgar pelo novo código, o parlamentar do PT não tem sequer o direito de silenciar diante de "práticas comprovadas que saiba serem ofensivas à moralidade" (artigo 16, V). As contradições não demoraram a aparecer. Há três dias, os senadores foram desautorizados por ministros de Estado, que falavam em nome do governo. Antes, na quinta-feira passada, em entrevista à Rádio Globo, o presidente da República minimizou as irregularidades: "Uma coisa é você matar, outra coisa é você roubar, outra coisa é você pedir um emprego, outra coisa é relação de influência, outra coisa é o lobby. O que acho é que nós temos que fazer as investigações corretas. (...) O que você não pode é vender tudo como se fosse um crime de pena de morte." Nessa oratória de insondável elasticidade moral, o presidente faz crer que o tráfico de influência, o nepotismo e o clientelismo são crimes menos graves que o roubo. Não são. Quando praticados por políticos, podem ser crimes piores, pois implicam a articulação intencional de vários agentes com a finalidade de extrair, de recursos e cargos públicos, benefícios familiares ou partidários indevidos, desviando, mais que dinheiro, o próprio sentido da administração pública. Nessa matéria, o código do PT deveria ser seguido por todos os filiados. Sem exceção. Códigos de ética são contratos públicos que instituições firmam com a sociedade. Quando dispõem de um mínimo de efetividade, convertem-se em instrumentos para que os cidadãos fiscalizem essas instituições. Por isso é que podem ser educativos. Esperemos, então, que o código do PT adquira alguma eficácia. Se assim for, será útil. Fora isso, há que registrar pelo menos um ponto obscuro no documento, um resquício de centralismo autoritário. Em seu artigo 6º, inciso IX, ele proíbe o militante de "fornecer a órgãos de imprensa informação acerca de fatos pertinentes à vida interna do partido ou às ações de seus filiados, sem se identificar como fonte", e afirma que isso constitui "falta grave". Claro que ninguém quer futriqueiros sem caráter em suas fileiras, mas para os mentirosos e dissimulados não há norma escrita que dê jeito. Ademais, que "fatos pertinentes à vida interna" são esses? Impossível precisar. Conversar com a imprensa é um dado da normalidade democrática. Não há no Brasil um só político, inclusive do PT, que não fale reservadamente com repórteres. Então, qual o propósito do dispositivo? Nesse trecho, o mesmo código que prega a transparência no Estado recusa a transparência na "vida interna do partido" - e trai a sombria intenção de perscrutar consciências e de vigiar conversas pessoais. Chega a assustar, mas também essa contradição, é bom que ela apareça. Eugênio Bucci, jornalista, é professor de Ética da ECA-USP