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Pobre Cultura!

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Por Gilberto de Mello Kujawski
4 min de leitura

Afinal, que é a cultura? Será um ornamento acrescentado à vida? A ilustração, por acaso? Ou a ciência? Será a superestrutura ideal derivada da infra-estrutura material, do trabalho, como querem os marxistas? Nada disso. Para entender o que é e o que significa cultura temos de partir da situação original, primária, do homem na vida, dentro da natureza. Ora bem, a vida é um caos, uma confusão, uma selva selvaggia, como lembra Ortega. Em suma, um naufrágio. Lançados na barafunda selvagem da vida, não temos no que nos apoiar, estamos perdidos e ameaçados de ser devorados pelo caos. O naufrágio só não se consuma porque o homem aprende a reagir forjando idéias claras e firmes sobre o mundo, convicções sólidas sobre o universo, suas leis, suas regularidades, e a ordem de sucessão das coisas. Numa imagem feliz e bastante divulgada, Ortega diz que a cultura é o movimento natatório que nos permite flutuar e nos preservar vivos em meio ao naufrágio em que a vida consiste. Cultura é o sistema vital das idéias em cada tempo. Cultura é o sistema de idéias e convicções que nos salva do naufrágio vital e nos fornece um ponto de apoio para construirmos com segurança a nossa vida. Todo o contrário, portanto, de um ornamento, ou da mera ilustração. Será a cultura ciência, desde logo? Não, a ciência é algo que vem depois. A cultura, na origem e em primeiro lugar, é um saber, sem dúvida, o saber a que se ater. Este é o saber na sua forma primeira, original, aquela certeza radical sobre o mundo na qual nos apoiamos para viver, um saber de orientação sobre o mundo que nos ensina como nos comportarmos com as coisas e o que esperar delas. Não ainda ciência, aquela indagação do "ser" das coisas, mas, simplesmente, o saber para viver em segurança e sem neurose. A nota essencial da cultura é a segurança, consubstanciada, inicialmente, nas certezas da sabedoria camponesa e iletrada, ou no mito, o mito grego, ou o mito dos povos primitivos, por exemplo. Ocorre que hoje a maior parte da cultura se dá como ciência, mas a cultura não consiste em ciência. Na Idade Média se acreditava de pés juntos na autoridade dos concílios eclesiásticos, e estes eram a fonte da cultura, porque forneciam sustentação, solo firme ao homem para viver; segurança, portanto. Mas da ciência não se vive. A ciência apresenta lacunas imensas que ficam para serem resolvidas nas calendas gregas. Ora, a vida é urgência, não se pode viver ad kalendas graecas, como diz Ortega. Em suma, o homem necessita de uma idéia completa do mundo para viver, e esta a ciência não pode dar, somente a cultura. A arte, por exemplo. Neste ponto chega um bando de pseudo-intelectuais declarando, solenemente: a arte se divide em "erudita" e popular. A chamada arte popular não é arte de verdade, é pretensa arte, ocupação ociosa de gente meio analfabeta, que só sabe fazer samba, valsinhas, música de carnaval, e tocar violão, que é instrumento de capadócio, etc. Arte de verdade é arte "erudita". Música digna deste nome só pode ser música "erudita", difícil, ao alcance de quem ganha pelo menos 20 salários mínimos. A Rádio Cultura FM, a título de "reformulação" dos programas daquela emissora, decidiu transmitir exclusivamente "música erudita". Em conseqüência, foram suprimidos sumariamente 17 programas, incluindo a música popular de vários países. Da noite para o dia os ouvintes habituais ficaram sem o Jazz Concert, apresentado há mais de 20 anos pelo ícone do jazz Carlos Conde; sem a Canção Francesa, a Canção Americana, a Canção Italiana, transmitidas aos sábados, e Todos os Cantos, com a cantora Fortuna. Na verdade, sob o manto da tal "reformulação" programática se esconde um implacável expurgo cultural e ideológico, no melhor estilo stalinista do velho Partidão. O expurgo cultural se assenta no equívoco de confundir música de qualidade com música "erudita". Não existe fronteira entre a música popular e a música clássica. Segundo Otto Maria Carpeaux (que sabia mais do que Markun), Bach, Haydn, Schubert, Chopin, Brahms, Mahler sofreram a influência decisiva da música popular. O Lied alemão não existiria sem ela. Nem a valsa, nem a modinha, nem os choros de Villa-Lobos. Nem o maxixe de Ernesto Nazaré e Marcelo Tupinambá. Ora, o que o público da Cultura FM exige é música de qualidade, seja "erudita" ou popular. É o que a nova direção constataria se fizesse uma pesquisa com seu público. Cultura não é só música "erudita", mas também a palavra inteligente, educativa, e a boa música popular. O expurgo ideológico visou, particularmente, pessoalmente, o programa Diário da Manhã, comandado por Salomão Schvartzman. O programa de Salomão enchia as manhãs paulistanas de alegria, a alegria da inteligência, do charme, e, inclusive, da melhor música clássica. O problema com a nova direção é que Salomão é uma pessoa incômoda, um jornalista independente que não se cansava de ridicularizar Lula e de criticar as veleidades da esquerda. Transformou-se, assim, em "persona non grata" dos "russos" da fundação, como ele mesmo diz. Schvartzman foi demitido com humilhação, mas não só ele. O tratamento dispensado à educadora Guiomar Namo de Mello, que trabalhou com Mário Covas, foi vergonhoso. "Nunca fui tão desrespeitada em minha vida", declarou. E Alberto Dines? Foi "rebaixado" para a Cultura AM (sem soltar um pio). Que ninguém se iluda. A Cultura está em perigo, e a cultura também. A anunciada "reformulação" foi o primeiro passo para a transformação da Cultura FM de emissora pública, dotada de total autonomia ante o governo e com um leque colorido de programas diversificados num cinzento órgão estatal, oficial, a serviço não da cultura, mas do culto a este que é o mais frio dos monstros (Nietzsche), este ente assexuado, que não pode ser nem pai nem mãe, o Estado.