13 de abril de 2016 | 03h00
Os números são simples de ser expostos. Dos 4,4 milhões de estabelecimentos rurais validados no último levantamento censitário, apenas 500 mil responderam por quase 90% do valor bruto da produção. Dentre estes, apenas 24 mil produziram a metade do valor! Os demais 3,9 milhões de imóveis resistirão nos próximos anos? Desse grupo, 2,9 milhões são estabelecimentos rurais onde moram famílias extremamente pobres, com o conjunto familiar retirando apenas meio salário mínimo de rendimento bruto mensal com a agricultura. Vivem, em especial, no Nordeste rural e são famílias envelhecidas que também recebem transferências do Bolsa Família e aposentadorias rurais. Por isso, gradualmente estão abandonando a atividade agrícola própria e passando a comprar seus alimentos, embora continuem morando em áreas rurais.
Sobraria o outro milhão de propriedades, onde vive uma baixa classe média rural, pois sua renda equivale a um salário mínimo mensal por pessoa, considerando a média de quatro moradores por domicílio. Esse grupo se distribui por todas as regiões, embora seja expressivo nos três Estados sulistas.
Esse é o sintético quadro numérico e espacial da realidade rural em nossos dias. Como o censo é de 2006, os dez anos passados acentuaram ainda mais as assimetrias aqui sintetizadas. E sobre esse quadro estrutural vêm predominando duas visões alternativas de interpretação e de ação governamental. Infelizmente, ambas estão erradas.
A primeira e dominante leitura sobre o padrão do nosso desenvolvimento agrário e agrícola é a que argumenta não existir uma solução agrícola para o problema da pobreza rural. Não haveria chance alguma de observar aumentos de renda para os mais pobres em razão de suas atividades agropecuárias. São muito pobres, com terra e recursos de menos e, portanto, seria ocioso insistir em que plantassem ou criassem animais, pois continuarão pobres.
Nenhuma autoridade faz tal afirmação de público, mas, concretamente, é a seguida pelos governos contemporâneos, incluindo o atual. Finge-se que algo está sendo feito, mas tacitamente se aceita que o melhor caminho é deixar que as migrações esvaziem o campo e, portanto, em algum tempo, teremos uma poderosa agropecuária, como setor econômico, mas enraizada em regiões rurais com raros agricultores e sem vida social.
Seguindo essa interpretação, conclui-se que as políticas destinadas às propriedades de menor porte econômico têm sido incapazes de integrar maior número aos mercados e gerar renda para uma proporção mais significativa de famílias rurais. São políticas públicas que persistem com o roteiro de décadas atrás, sem se adequarem às exigências de uma agricultura que vem passando por uma revolução tecnológica.
Já a segunda interpretação é bizarra, pois defende a retórica de um tempo remoto e ignora as transformações ocorridas na produção agropecuária. É visão usualmente associada aos setores da esquerda agrária convencional, e insiste em reforma agrária e outros temas antes tão falados. Seu pressuposto é o que afirma ser a causa da pobreza rural a histórica concentração fundiária que prevaleceu desde sempre. Mas se assim foi no passado, à medida que a modernização capitalista veio transformando a economia agrícola, o peso da terra gradualmente se reduziu e não é mais um fator que responda pela pobreza rural. A terra explica hoje apenas 7%-8% do crescimento da produção, enquanto a tecnologia responde por dois terços da expansão verificada. Nas últimas duas a três décadas, a variável que amplia as distâncias sociais e a desigualdade no campo vem sendo, sobretudo, a intensificação tecnológica numa parte dos estabelecimentos rurais, os quais se integraram virtuosamente aos mercados, tanto o interno como o global, apropriando-se de proporções crescentes da riqueza gerada. No outro extremo, a vasta maioria dos demais produtores permaneceu à margem do processo de transformação produtiva e, portanto, foi ficando cada vez mais para trás, sem capacidade de concorrer com os imóveis rurais modernizados.
Não obstante a imensa importância econômica da agropecuária, pois é o único setor que vem crescendo positivamente, alavancado por ganhos contínuos de produtividade, não temos tido a capacidade de interpretá-lo corretamente. O resultado é que as políticas públicas para os mais pobres do campo têm sido erráticas, equivocadas e fora de seu tempo, enquanto a produção agropecuária empresarial continua se expandindo em ritmo e eficiência que impressionam. Já milhões de famílias rurais pobres, encurraladas em face do seu desamparo, parecem estar condenadas à migração para as cidades.
É surpreendente que a sociedade não esteja discutindo o tema e, particularmente, a contribuição potencial da agropecuária para a redução da grave crise que nos aflige. O destino de quase 3 milhões de estabelecimentos rurais pauperizados e seus estimados 12 milhões de moradores não interessa aos demais brasileiros?
*ZANDER NAVARRO E ELISEU ALVES SÃO, RESPECTIVAMENTE, SOCIÓLOGO, PESQUISADOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS (Z.NAVARRO@UOL.COM.BR) E DOUTOR EM ECONOMIA RURAL, EX-PRESIDENTE DA EMBRAPA (ELISEU.ALVES@EMBRAPA.BR)
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