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Opinião|Política e imprensa em tempos de internet

Não há palavra pública imune a críticas, nem autoridades capazes de impor silêncio absoluto

Atualização:

Convidado a participar de um evento acadêmico sobre a crise política, coube-me, entre outras questões, discutir o impacto das novas tecnologias de comunicação e o papel da imprensa. O convite levou-me a recuperar a introdução que escrevi para um pequeno livro sobre política e jornalismo, editado na virada dos anos 70 para os anos 80, quando os governos militares distribuíam notas secas aos jornais comunicando o que não podia ser publicado. No texto afirmei que a liberdade de imprensa sempre enfrentou ameaças ao longo da História, sobrevivendo a todas elas. Também disse que, por mais que o espírito de liberdade sobreviva sob os mais opressores regimes políticos, as pressões contra ele não desaparecem.

Na época em que escrevi o prefácio, a preocupação era com os temas da mentira e da censura, comuns aos períodos históricos em que os jornais são obrigados a divulgar não sua leitura dos acontecimentos, mas sinopses oficiais. Inspirado em Hannah Arendt, lembrei que o problema da mentira é que ela só é eficiente quando o mentiroso sabe a verdade que quer esconder. O campo da política é o do pensamento plural e seu terreno não é o da evidência, dizia ela, mas o do acordo e do consentimento, que pressupõem liberdade, participação, conflito, diálogo e negociação. Como o pensamento político é eminentemente representativo, consentimento sem liberdade é viciado e acordo sem conflito é escamoteação ideológica. Ainda nessa linha de raciocínio, política e jornalismo são atividades que se implicam e só se articulam quando existe um mundo público e, por extensão, um campo para o exercício da liberdade. Quando a hipocrisia, o conformismo e enviesamentos ideológicos se sobrepõem ao vigor moral, à participação e à crença na dignidade humana, é preciso buscar o sentido do espírito de liberdade, que se expressa por independência, combatividade e poder de crítica.

Relendo aquele texto, escrito quando não havia internet e os movimentos sindicais e estudantis recorriam ao mimeógrafo para divulgar opiniões, fica claro que a imprensa exercia um papel que hoje é ameaçado pelas novas tecnologias de comunicação. Em outras palavras, jornais e revistas supervisionavam as fronteiras entre o espaço público e os espaços sociais, entre as conversações e as informações. O espaço público tradicional relegava à sociedade a função de audiência, filtrando informações e opiniões. Com a internet, concebida não para que um emissor se dirija a uma massa acrítica de receptores, mas para facilitar e agilizar as comunicações entre eles, a verticalidade entre jornalistas e leitores vem sendo substituída por novas formas de relações entre o mundo das conversações e o mundo das informações. Dito de outro modo, a verticalidade entre jornalistas e sua audiência cedeu lugar a redes de comunicação que horizontalizaram o espaço público. A internet propiciou assim uma significativa ampliação do espaço público, que cada vez menos é filtrado por jornalistas e políticos profissionais. Como lembra Daniel Innerarity, da London School of Economics, em seus ensaios sobre a política em “tempos de indignação”, não há nenhuma palavra pública imune a críticas, nem autoridades governamentais capazes de impor o silêncio absoluto.

No lado positivo, esse processo multiplica o intercâmbio de opiniões e amplia o campo do debate democrático, oferecendo amplas possibilidades para a transformação da política. No lado negativo, ele não é imune a todo e qualquer tipo de risco, como difusão de mentiras e difamações, achaques a reputações, desmoralização de adversários e os perigos da personalização dos conteúdos por parte dos sites de buscadores, como o Google. À medida que esses sites conhecem as preferências dos usuários e se empenham em oferecer serviços sob medida para seus gostos sociais, inclusive notícias e resultados de pesquisas, a internet intensifica de tal modo suas preferências que eles acabam não tendo acesso a opiniões diferentes nem recebendo informações que poderiam desafiar ou alargar, de forma crítica, suas visões de mundo.

Além da horizontalização do espaço público, as redes sociais viabilizadas pela internet são descentralizadas, dada a conectividade entre entidades estudantis, movimentos sociais e coletivos, a proliferação das chamadas organizações de “perímetro aberto – com facilidade de entrar e de sair e com critérios porosos de pertencimento – e o questionamento contínuo das autoridades hierarquizadas do poder público, disseminando, estimulando a ideia de auto-organização. Pelas críticas, controles recíprocos e troca incessante de informações em tempo real, muitos participantes das redes sociais creem na possibilidade de uma vida em grupo sem a necessidade de uma autoridade central – o que tem sido visto nas ocupações de escolas públicas por estudantes do ensino médio.

Quando redigi o prefácio do livro sobre política e jornalismo, o que se esperava da imprensa era que cumprisse de modo equilibrado e responsável o papel de iluminar e enfatizar a importância do mundo público. O que se esperava era que atuasse como um mecanismo de articulação política fundamental ao processo de conversão do pluralismo de valores políticos em decisões coletivas legítimas. Com as novas tecnologias de comunicação eletrônica, a imprensa enfrenta dificuldades para atuar como ponte entre os leitores e o mundo, é certo, ainda que permaneça como memória e espécie de consciência deles. Por sua vez, a internet vai despertando todo tipo de devaneio político – incluídos os mais radicais, como os de inspiração libertária e anarquistas.

Se isso está gerando formas originais e consequentes de experimentação democrática ou se vem estimulando aventuras autoritárias e um ativismo político irresponsável, essa é outra questão.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLAW)

Opinião por José Eduardo Faria