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Opinião|Por que o Brasil não assusta?

Atualização:

Imagine se o Brasil atual, o país contorcido por uma crise política que paralisa a condução da política econômica, cujo endividamento público cresce sem que haja nenhuma perspectiva de ancorá-lo por meio de ajuste profundo, fosse transplantado para os anos 1990. Crises, caos, surtos de pânico, fortes saídas de capital, desvalorizações e, no fim, o calvário, o FMI. Os anos 90 foram pródigos em gerar crises dramáticas originadas nas economias emergentes, inclusive no Brasil. Se o Brasil decapitado de hoje entrasse no túnel do tempo e fosse arremessado àquela época, por certo não escaparia desse destino cruel.

Por que o Brasil já não assusta? Por que os investidores e analistas internacionais, sem falar no próprio governo, parecem tão seguros na convicção de que o País, à beira do precipício, está imune à dinâmica perversa que marcou uma era? Por que todos acreditam que o País já não é risco para a economia global, não provoca contágios nefastos, epidemias de balanço de pagamentos capazes de derrubar países? O Brasil, a maior economia latino-americana, responsável por cerca de 40% do PIB da região, não assusta sequer alguns de seus vizinhos, como o minúsculo Chile, a combalida Colômbia, o frágil Peru. Como alcançamos tamanha “irrelevância”?

Há três possíveis explicações para a relativa calmaria perante o esfacelamento brasileiro, três reflexões interligadas que ajudam a desvendar a nossa posição no mundo de hoje.

A primeira é que neste nem tão admirável mundo novo pós-crise financeira global, os parâmetros para avaliar quanto um país apresenta o temido “risco sistêmico” – isto é, a possibilidade de que crie efeito dominó perverso, irradiando sua crise para outras partes do planeta – mudaram. Antes de o sistema financeiro americano implodir, arrastando consigo instituições e países, a percepção do que constituía risco sistêmico era menos dramática. Não era preciso que a crise se originasse no maior sistema financeiro global, ou se manifestasse no país que não tardaria a tornar-se o principal motor da economia e do comércio globais – a China. Bastava que ocorresse algo grave em alguma economia “grande o suficiente”, ou “importante o suficiente”, como Brasil, México, Rússia, Coreia do Sul nos anos 90. A devastação ocasionada pela crise de 2008 levou o risco sistêmico para outro patamar, que Rússia, México, Coreia, Brasil jamais alcançaram. Por isso a queda do petróleo e suas consequências para a economia russa não desarticulam o mundo. Por isso também o Brasil desnorteado não é capaz de deflagrar onda de aversão ao risco global, como outrora fazia.

A segunda explicação possível é que neste mundo em que as políticas monetárias viraram de ponta-cabeça, com bancos pagando aos bancos centrais pelo privilégio de deixar depósitos nos balanços dessas instituições, credores pagando aos devedores pelo privilégio de carregar suas dívidas, a crise brasileira é tão normal que não merece muita atenção. A situação em que credores pagam a devedores, e não o reverso, está aí desde que os bancos centrais globais resolveram entrar no território nebuloso das taxas de juros negativas. Enquanto a academia corre atrás dos gestores de política econômica para formular estrutura teórica que permita compreender o funcionamento de uma economia com taxas de juros negativas, mercados, investidores e analistas se debruçam sobre as implicações desse experimento, sem régua ou compasso.

Nesse mundo de maravilhas estonteantes e políticas desconcertantes, o Brasil é normal. Para a sua crise fiscal a solução é conhecida, ainda que pareça inalcançável. A solução não é a banda de Barbosa, tampouco as palavras vazias sobre a reforma da Previdência, que virá em uma década, aguardem. A solução é feijão com arroz, ajuste com reformas. As reformas que devem ser feitas tanto para dar respaldo às contas públicas e à política monetária como para modernizar o sistema financeiro brasileiro, tornando-o menos dependente dos bancos públicos.

O mundo, entretanto, não está interessado nessa conversa batida, chão pisado e repisado. O mundo se interessa pelo exotismo não tropical das taxas de juros negativas. E, claro, pela China.

A terceira explicação é que o Brasil fez esforço considerável nos últimos anos para se tornar irrelevante. Não reformamos quase nada, não integramos nossa economia ao resto do mundo, continuamos apegados às ideias do século passado, as mesmas que exaltavam o privilégio de um mercado interno tão vasto para a indústria nacional. Não é fácil transformar um país de dimensão continental em país irrelevante, tratado com condescendência tanto pelo Norte quanto pelo Sul, pisoteado pela imprensa internacional, a caminho do retrocesso econômico e social.

Mas é essa a dura realidade da recessão e da inflação com dinâmica própria, das dívidas e dos déficits elevados, da política monetária que era vidro e se quebrou. A ciranda da rolagem da dívida pública retornará inevitavelmente, sugando o que resta de energia ao País para manter o governo acima da linha d’água. A estagflação é nosso destino por tempo indeterminado.

Não, o Brasil não assusta porque a métrica para medir o que dá medo mudou. A opção pela irrelevância nos torna ainda menos importantes aos olhos do mundo, ainda que a nossa crise seja avassaladora para o povo. Estamos excluídos do debate global sobre os desafios que hoje afligem tanto a política econômica quanto a estrutura teórica que nós, economistas, estávamos acostumamos a usar. A influência brasileira caiu em consonância com o aumento de nossa irrelevância mundial.

É trágico que a nossa capacidade de assustar o mundo esteja hoje circunscrita ao vírus zika, ou zika vírus, como é chamado no Brasil pela imprensa e pelos especialistas. A irrelevância brasileira está tão arraigada que para falarmos da assustadora epidemia substituímos o português correto pelo anglicismo vulgar.

* MONICA DE BOLLE É ECONOMISTA E PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS

Opinião por MONICA DE BOLLE