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Pouco para a ''reconciliação''

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Por Redação
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Depois de dizer que "não podemos ir a reboque da imprensa e da opinião pública", o presidente da Câmara, Michel Temer, prometeu algumas medidas para acabar com a farra dos deputados com as suas cotas de passagens aéreas. Quando as medidas entrarem em vigor, viagens de parlamentares ao exterior e, no caso dos assessores, para qualquer destino, dependerão de autorização prévia. Além disso, os parlamentares terão de detalhar os deslocamentos na internet. Antecipando-se à Câmara, o Senado adotou providências nessa linha. Mas o que os congressistas fizeram até agora com o privilégio fica por isso mesmo. Temer fez questão de "deixar claríssimo" que "não houve prática ilícita no passado". Houve. Por um princípio de direito que um constitucionalista como ele não há de desconhecer, agentes públicos só podem fazer o que as leis autorizam expressamente. Se as normas sobre as passagens dos parlamentares eram omissas em relação ao seu repasse a terceiros, isso equivalia a uma proibição. Foi o que levou um assessor da presidência do Senado, inquirido sobre a omissão das viagens ao exterior nas novas regras instituídas na Casa, a responder que "se não está mencionado, está proibido". A esbórnia, portanto, não era apenas imoral: era também ilegal. É preciso "deixar claríssimo" esse ponto para cortar pela raiz a sugestão de que o chamado pacote moralizador é suficiente para "reconciliar", como diz Temer, o Congresso com a sociedade. Ao contrário do que se insinua, os políticos não cortaram na carne. Se algo sacrificaram - relutantemente - foi a obscena desenvoltura, a licenciosidade com que se apropriavam do dinheiro público para cuidar dos próprios interesses, distribuir favores e gozar a vida. Entre janeiro de 2007 e outubro de 2008, por exemplo, mais da metade dos 513 deputados federais usou as suas cotas para fazer ou proporcionar 1.885 viagens ao exterior, apurou o site Congresso em Foco. Um único deputado emitiu 40 bilhetes internacionais naqueles 22 meses. Ao todo, a pouca-vergonha custou ao contribuinte R$ 4,7 milhões. Expostos os seus vexames, a instituição legislativa não só não pede desculpas ao País, como ainda, pelas reações de diversos de seus membros às mudanças, corrobora a convicção geral de que a mentalidade predominante entre eles continua intacta. O deputado que se queixa de que terá de ir a Brasília, mas a sua mulher "fica lá", o outro que não quer "ser obrigado a colocar minhas coisas na internet", o senador que diz que "daqui a pouco vão distribuir vale-transporte" não devem ser vistos como anomalias em um ambiente eticamente salubre. E o que dizer do ex-governador, ex-ministro e sempre candidato presidencial Ciro Gomes? Com sua habitual fanfarronice - não tem medo de nada, nem da imprensa, nem do Ministério Público -, aos palavrões, acusou os colegas de não terem explicado à população a importância das cotas de passagens. Por isso, argumentou, "os jovens brasileiros pensam que a política é um pardieiro de pilantras, enganadores e defensores de privilégios" - como se outra coisa fossem os protagonistas do escandaloso noticiário sobre o que se passa nos bastidores da Casa das Leis. E há, como sempre, os que recorrem à teoria da conspiração para desqualificar as denúncias de bandalheiras. "A imprensa quer fechar o Congresso", vociferou, quem sabe cometendo um ato falho, o corregedor da Câmara, ACM Neto. No Brasil de hoje, só um lunático teria esse intento. A imprensa evidentemente não fabricou, tampouco exagerou as mazelas do Legislativo. O que ela vem fazendo, no seu papel, é devassar o covil de falcatrueiros protegidos pelo corporativismo, expondo a complacência e a cumplicidade compartilhadas por um número desalentadoramente grande de parlamentares. A grita dos "pilantras, enganadores e defensores de privilégios" dá a medida da seriedade desse trabalho. Agora, com as medidas anunciadas, o Congresso responde timidamente às mazelas de sua própria autoria - enquanto flerta com a assombrosa ideia de incorporar à paga dos parlamentares os benefícios que eles se autoconcederam ao longo do tempo. "O passivo é imenso", observou ontem neste jornal a colunista Dora Kramer. E inversamente proporcional à disposição do Congresso em saldá-lo.