Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Primeiro quilombo urbano

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Por Redação
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É significativo o nome do primeiro quilombo urbano a ser reconhecido no País: Associação Quilombo da Família Silva. Esse sentido "familiar" exprime muito bem a distorção conceitual que existe entre o que foram os quilombos e o que é a proteção que o ordenamento jurídico se dispôs a dar aos descendentes dos escravos que neles se refugiavam, os quilombolas. Localizado em plena Porto Alegre, com área de 6,5 mil metros quadrados, o quilombo dos Silvas pode receber, ainda este ano, titulação definitiva. O Incra já tem a posse formal de parte do terreno e só aguarda o encerramento da discussão sobre valores para transferir a titularidade aos quilombolas - já que os desapropriados reivindicam na Justiça a atualização de alguns valores da indenização e juros. Comenta-se que o primeiro quilombo urbano é referência para outras comunidades que lutam pelo mesmo direito no Brasil. Só há um pormaior a ser considerado: esses "quilombolas" urbanos de Porto Alegre - os membros da família Silva - não são de lá. Como conta reportagem de Elder Ogliari, no Estado de domingo passado, seus antepassados - quatro na ocasião - lá chegaram na década de 1940, saídos de São Francisco de Paula, no interior do Rio Grande do Sul. Os quatro membros fundadores do quilombo dos Silvas, evidentemente, não haviam fugido da escravidão - extinta havia mais de sessenta anos. Chegaram à capital, vindos do interior, para lutar pela vida como tantos imigrantes, de muitas regiões do País e do mundo. Na capital, instalaram-se em um terreno distante do centro, onde passaram a cultivar frutas, hortaliças e ervas medicinais e de onde às vezes saíam para vender seus produtos ou prestar serviços nos bairros. A expansão da cidade acabou por "cercar" os Silvas, especialmente nos anos 80, quando o bairro se valorizou muito, atraindo famílias abastadas. Com 15 casas de madeira, nas quais moram 15 famílias e 70 pessoas, hoje o terreno dos Silvas é um enclave em meio a mansões e condomínios de luxo num dos bairros mais valorizados da capital gaúcha. "O Quilombo Silva" - afirma um dos dirigentes do Movimento Negro Unificado do Rio Grande do Sul - "é um divisor de águas. O fato de o grupo assumir identidade étnica para garantir seu espaço físico e de ter sido vitorioso em sua luta provocou impactos em todo o País." A história dessa "exemplar" conquista começou nos anos 60 com disputas judiciais entre proprietários - que reivindicavam a posse e estiveram a ponto de conseguir o despejo dos Silvas por pelo menos duas vezes - e moradores do terreno - que moviam ações de usucapião. Em 2003, depois do decreto presidencial estabelecendo que podem ser definidas como quilombos as comunidades portadoras de uma tradição de resistência da população negra, os Silvas se fortaleceram muito - e desequilibraram "etnicamente" a disputa. É claro que jamais representaram o sentido de "tradição de resistência" da comunidade negra originária dos quilombos a que se refere o decreto presidencial. E não existe lei que conceda condições de "resistência" a inquilinos apenas em razão da cor da pele. Mas a família Silva não foi a única, em Porto Alegre, a beneficiar-se de um hipotético e esdrúxulo diferencial étnico, com que se pretende aplicar o Direito possessório. A família Fidelix tem trajetória semelhante. Migrou, na década de 1970 - portanto, mais longe ainda dos tempos da escravidão -, do antigo Rincão dos Negros, em Sant?Ana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, para um terreno público na capital rio-grandense, no bairro Azenha. Depois de resistir a uma ação de despejo movida pela prefeitura em 2003, a comunidade descobriu que poderia fortalecer sua posse se fosse reconhecida como quilombo, como relatou seu líder, afirmando: "Quando toda a documentação estiver pronta, poderemos usufruir das políticas públicas de saneamento e habitação e até de financiamentos internacionais para programas de geração de renda." É a vantagem dos quilombos urbanos sobre os rurais, até agora os únicos a obterem "registro" legal. Não se duvide de que vão proliferar, uma vez que para sua aquisição basta escolher o terreno que se pretende ocupar, ocupá-lo, demonstrar "resistência" em eventuais tentativas de despejo - e entrar com a documentação no Incra.