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Pró-Justiça contra o calote de precatórios

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Por Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra
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Quando, na década de 90, os bancos se encontravam em situação delicada e qualquer abalo no sistema financeiro poria em risco toda a economia brasileira, o governo Fernando Henrique Cardoso criou o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), um programa de defesa do sistema financeiro que capitalizou os bancos públicos e privados do Brasil. Tal programa custou o equivalente a 2,5% do PIB do País, hoje avaliado em R$ 2,7 trilhões. Certamente, o Proer terá permitido que nestes anos de 2008-2009, na crise do sistema bancário internacional, o Brasil fosse um dos poucos países que tenha saído ileso à quebradeira global. Não é de hoje que há, no Brasil, outra ameaça de desorganização geral, necessitando do socorro público: trata-se da chamada "crise dos precatórios". O precatório, como todos sabemos, é o instrumento pelo qual a Justiça, por meio de uma sentença final, determina que os Executivos federal, estadual e municipal paguem o credor importância determinada. O tema jurídico dos precatórios é antigo como instituto do Direito pátrio e tem suas origens nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas surgidas por volta do ano 1500. Já em 1898, o decreto nº 3.084 regulou a matéria, porém sem dar garantia de pagamento ao credor. Tornou-se, no entanto, objeto de texto constitucional a partir da Constituição de 1934 (artigo 182). Propugnava-se lá a disciplina da ordem dos precatórios. Foi, no entanto, na Constituição de 1988, em seu artigo 33 dos atos e disposições transitórias, que houve o primeiro calote oficial à Justiça e a suas determinações, preceituando que o pagamento dos precatórios até então existentes ocorresse em 8 anos (prestações anuais, iguais e sucessivas). O segundo grande "calote constitucional" ocorreu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000, que determinou novamente que as dívidas da União, dos Estados e municípios, frutos de precatórios até aquele momento julgados, fossem pagas em até 10 anos. Os entes federativos nem mesmo assim cumpriram a Lei Maior. Hoje, segundo calcula Flávio Brando, presidente da Comissão de Precatórios da OAB-São Paulo, os três entes federativos - União, Estados e municípios - devem em conjunto algo perto de R$ 100 bilhões. O projeto de Emenda Constitucional nº 12, de autoria do senador Renan Calheiros (PMDB - AL), no dia 1º de abril foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e, no mesmo dia, no plenário, em dois turnos, com "aprovação a toque de caixa", seguindo agora para votação na Câmara dos Deputados. Vai-se configurar, assim, se aprovada, mais um estrondoso calote constitucional, determinando que o credor, segundo o presidente da OAB federal, Cezar Britto, leve "100 anos para receber". Mas não é, efetivamente, o instituto do "precatório" que está em questão neste momento, mas sim a figura da própria Justiça, cujas decisões terminativas não são cumpridas há muitos e muitos anos, solapando seu respeito e sua dignidade. Neste momento em que o Brasil pretende ser uma ilha de saúde num mundo doente, como poderemos sê-lo se a própria Justiça não tem autoridade para fazer prevalecer suas decisões? Que se dirá da efetivação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), esse programa tão caro ao presidente Lula, que deu-lhe até uma mãe, a ministra Dilma Rousseff, para à sua frente protegê-lo? O que assegurará que os parceiros do PAC serão ressarcidos num eventual descumprimento do programa pela autoridade pública? Acredito, pois, que o governo federal deva realizar de imediato o "pró-Justiça", injetando R$ 100 bilhões na economia, o que promoverá o necessário saneamento da Justiça com a volta do respeito à cidadania. Alguns dirão que R$ 100 bilhões é cifra exagerada e que a economia não suportará o aumento dos meios de pagamento (o "M4", no linguajar técnico). Em fevereiro, o M4 totalizava R$ 2,25 trilhões. Vê-se, portanto, que R$ 100 bilhões para o saneamento da Justiça significará menos do que 5% (cinco) dos meios de pagamento globais do País. Neste momento em que o mundo inteiro procura manter o consumo firme e irredutível, a fim de que a economia continue bombando, os Estados Unidos concederam, ainda no governo George W. Bush, para simples gastos dos contribuintes, US$ 168 bilhões. Felizes os brasileiros, que são credores de R$ 100 bilhões do seu erário, e não devedores de seus cartões de crédito, como nos Estados Unidos. Penso que R$ 100 bilhões terão um significado muito salutar na economia e promoverão, por consequência, o pagamento de muitas dívidas dos próprios consumidores com o sistema bancário e com os crediários, o recolhimento de impostos em benefício dos governos federal, estadual e municipal, bem como a promoção do consumo saudável e do investimento agora tão necessário. Em artigo de autoria de Antônio José Toffoli, advogado-chefe da Advocacia Geral da União (AGU), publicado no jornal Valor Econômico de 4 de fevereiro, afirmou ele que "a Advocacia Geral da União garantiu à população mais de R$ 255 bilhões para a execução de políticas públicas nos dois últimos anos". Se a AGU arrecada tantos bilhões para a execução de políticas públicas, não é hora de um retorno de R$ 100 bilhões para os credores da Justiça? Ou a Justiça só vale para o bem da União? Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra, advogado, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Administração de Instituições Financeiras pelo IBMEC e pela New York University, é autor do livro A Pirâmide da Solução dos Conflitos, editado pelo Senado Federal E-mail: ulhoa@yahoo.com.br