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Procedimento não é inquérito

Ao equiparar na prática procedimento a inquérito comete-se abuso, pois deixa parte da atividade persecutória e investigativa do Estado fora da égide da lei processual penal

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Por Redação
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Com frequência ouvem-se queixas das manobras que os políticos fazem para assegurar interesses pessoais e corporativos. Mas tais manobras, que sutil ou não tão sutilmente ferem o bom Direito, não são exclusividade dos políticos. Elas não poupam as autoridades de outros Poderes e também do Ministério Público.

Uma dessas manobras que deixam de lado o rigor da lei relaciona-se ao modo como alguns membros do Ministério Público tratam do procedimento administrativo preparatório do inquérito. Tem sido cada vez mais frequente referir-se a esses “procedimentos” como se fossem uma espécie de “inquérito prévio”. Por exemplo, recentemente foi divulgado que havia na Justiça Federal de Curitiba mais de 200 inquéritos e procedimentos abertos da Lava Jato, à espera de um desfecho. Até o site do Ministério Público Federal (MPF) usa uma linguagem que deixa margem a dúvidas, ao indicar que “o procedimento preparatório é instaurado para apurar notícias de irregularidades quando os fatos ou a autoria não estão claros ou quando não é evidente que a atribuição de investigação é do MPF”.

A questão não é semântica. Ao equiparar na prática procedimento a inquérito comete-se abuso, pois deixa parte da atividade persecutória e investigativa do Estado fora da égide da lei processual penal.

Quando o Estado investiga os cidadãos, ele deve estar submetido a estritas regras que impeçam a prática de autoritarismos, perseguições e ameaças. Como a história ensina largamente, esse é o único modo de assegurar o pleno respeito às garantias e direitos individuais. O poder estatal é demasiado forte para deixá-lo desimpedido, especialmente quando ele se volta contra os cidadãos. Justamente por isso, o inquérito penal está regido por um conjunto de regras precisas, a que as autoridades policiais e investigativas devem se submeter. Por exemplo, o Código de Processo Penal define que “o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”. Ou seja, por ser a atuação do Estado tão agressiva, são-lhe dados prazos de fato exíguos, também como estímulo para que trabalhe diligentemente, sem delongas.

Já os procedimentos prévios ao inquérito não têm uma normativa tão rígida como a do inquérito. Eles estão num âmbito administrativo e, de acordo com a lei, são atos pontuais, como, por exemplo, uma requisição de informações. Um Estado Democrático de Direito, que zela pelas garantias individuais de seus cidadãos, é incompatível com um conceito ampliado dos procedimentos, como se eles fossem um pequeno processo. A rigor, instaura-se um inquérito e realiza-se um procedimento.

É necessário, portanto, que os procedimentos sejam de fato procedimentos, e não inquéritos disfarçados. Se na verdade eles forem inquéritos, deverão estar submetidos ao Código de Processo Penal, com seus prazos, diretrizes e condições. Por exemplo, a autoridade policial não pode mandar arquivar os autos de um inquérito, cabendo a um juiz fazê-lo, após avaliar o material probatório coletado. Além de ser uma maneira de impedir que se arquive um caso no qual havia base para apresentação da denúncia, essa regra assegura que todo o trabalho investigativo de um inquérito seja submetido à apreciação do Poder Judiciário, evitando possíveis abusos na atuação do Estado. Já se sabe que tudo o que for feito no âmbito de um inquérito passará pelos olhos do juiz. Num procedimento, não há essa mesma proteção.

Se o combate à impunidade significa justamente o respeito integral à lei, também ao Código de Processo Penal, urge não misturar procedimento e inquérito. Todos, também as autoridades públicas, estão – devem estar – abaixo da lei.