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Pupilos de Lula no divã

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Por Gaudêncio Torquato
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Por esta ninguém esperava: Luiz Inácio, o presidente da República, como psicólogo e com dois pacientes no divã. A primeira é Dilma Rousseff, a ministra de temperamento esquentado, que sinaliza cuidado na rota dos governistas com suas broncas públicas em ministros e assessores. O destempero pode ameaçar as alianças em torno de sua candidatura em 2010. O segundo é Ciro Gomes, que avalia a possibilidade de se candidatar ao governo de São Paulo, tendo como patrono o próprio Lula. A índole explosiva do deputado nascido em Pindamonhangaba (SP) e com vida pública no Ceará também clama pela psicologia lulista. A espoleta que parece prestes a explodir, sempre que as duas figuras enfrentam situações até corriqueiras, começa a inquietar correligionários, que enxergam no jeito destrambelhado de ambos fator de risco para suas eventuais campanhas. E há quem defenda a alternativa de juntar os dois na mesma chapa, caso Ciro decline do pleito paulista, o que significaria acender o fogo perto da pólvora. Seja qual for o cenário, o psicólogo Lulinha paz e amor terá pela frente a indeclinável tarefa de amenizar o azedume de seus dois pupilos. A construção de diques para conter a torrente de emoções de candidatos é uma recorrência nos ciclos eleitorais. Nem sempre esse empreendimento tem êxito. Alterar a identidade de uma pessoa é tarefa difícil de ser alcançada. O exercício equivaleria à recomposição do temperamento dos quatro grupamentos classificados por Hipócrates, o pai da medicina: os sanguíneos, os coléricos, os melancólicos e os fleumáticos. A ministra Dilma e Ciro, pela maneira como algumas vezes se comportam, aproximam-se dos coléricos, pessoas imperiosas, controladoras, independentes e impetuosas. Já os sanguíneos, como Getúlio Vargas ou Winston Churchill, conseguem reunir aquelas duas qualidades que Maquiavel distinguia no leão e na raposa: a força para se garantir contra os lobos e a astúcia para agir na hora exata. Lula parece sanguíneo, com seu estilo cordial e comunicativo. Mas agrega também aspectos negativos, como a indisciplina e o egocentrismo. Se Vargas equilibrava rigor e benevolência, gastando saliva para se fazer amado pelo povo, exibindo autoridade para ser temido, era um mestre na arte de prometer e não cumprir, enquanto Churchill era capaz de perdoar adversários. Não guardava rancor, comportando-se em público como se estivesse entre os pares. Não tinha máscaras. Ensinava: "A raiva é um desperdício de energia." Desperdício, aliás, que, em tempos idos, impregnou a alma do irascível Itamar Franco, em quem se ajusta bem a leitura de Ulysses Guimarães: "Há gente que faz política com o fígado, conservando o rancor e os ressentimentos na geladeira." É provável que a empreitada de Lula no campo da psicologia seja mais bem-sucedida com a (im)paciente Dilma que com o impetuoso Ciro. Em relação àquela, a proximidade o ajudará. Quanto ao ex-governador do Ceará, escolhido para o papel de canhoneiro de plantão, a fúria discursiva faria parte da estratégia para fustigar o governador José Serra, alvo de sua artilharia. Com o tiroteio, a ministra Dilma Rousseff poderia avançar em plagas paulistas. A questão é saber se a virulência dos pupilos do presidente angaria votos. O receio é que a eventual candidata, sem conter o animus espinafrandi, crie barreiras nas conversações com aliados, a partir do PMDB, que arranjaria em carões públicos motivo para afastamento. Ademais, o eleitorado quer enxergar em seus candidatos uma identidade acima do bem e do mal. Só uma pequena fatia gosta do estilo galo de briga encarnado por Ciro. Perfis azedos e mal encarados são, regra geral, antipáticos. Lula sabe que o feitiço se pode voltar contra o feiticeiro. Por isso poderá convocá-los para uma sessão de psicologia. Quanto ao governador paulista, a tendência é a de que, com seu temperamento fleumático, não caia em emboscadas. Os fleumáticos, como se sabe, são mais diplomatas. Organizados, práticos e condescendentes, analisam poréns e circunstâncias. Na disputa entre um fleumático e um colérico, o primeiro leva vantagem. Já o segundo é mais eficiente no papel de opositor. Ou quando o momento sugere indignação contra o status quo. No caso brasileiro, entre os prováveis candidatos, Dilma, com seu temperamento esquentado, atuaria bem como abre-alas oposicionista. A História é povoada de perfis irritadiços. Alguns tiveram amplo domínio: Hitler, Mussolini, Napoleão. Aqui por perto, na Argentina, também temos um exemplo: a índole de Isabelita Perón está na memória. Dirigia o país com opressiva autoridade. A ex-dançarina de balé folclórico, estoica e resoluta, fechando ouvidos ao bom senso, expurgou sindicatos, amordaçou a imprensa, impôs disciplina férrea à universidade, proclamou o estado excepcional em novembro de 1974, decretou centenas de prisões. Acabou deposta pelos militares em 1976, em parte tragada pelo temperamento intransigente. Pode até haver exagero nos ditos sobre a índole da ministra-chefe da Casa Civil. Sabe-se, porém, que o evento em que humilhou Luiz Antônio Eiras, que acabou pedindo demissão do cargo de secretário executivo do Ministério da Integração, não foi um ato isolado. Até o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, teria sido visto vertendo lágrimas após forte reprimenda da nossa dama de ferro. Se as versões sobre atitudes intempestivas são fantasiosas, só o tempo dirá. De fleuma ela nada ostenta. E o temperamento melancólico, o quarto modelo hipocrático, que caracteriza pessoas autodisciplinadas, também parece não combinar com ela. Para colocá-la nos trilhos de uma campanha Lula atuará como conselheiro treinado na arte de engolir sapos, evitar estouro de boiadas e sensibilizar as massas. Ensinará, por exemplo, que a arma secreta de uma eleição é a astúcia. Para o arrebatamento de Ciro poderia lembrar Getúlio: "Inimigos não sei se os tenho. Mas, se os tiver, não serão jamais tão inimigos que não possam vir a ser amigos." Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação