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Quando a vergonha acaba

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Por Mauro Chaves
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Quando um chefe de Estado e governo afirma que a cobrança ética da sociedade é uma hipocrisia, está explicado como acabou a vergonha geral da Nação. E quando acaba a vergonha nacional, toda indecência vira normal. Com a maior naturalidade, considera-se que o dinheiro público deva ser gasto para assegurar vantagens especiais em favor dos que têm por função cuidar da coisa pública. E com a maior naturalidade se desrespeitam direitos dos cidadãos comuns, enquanto facilidades e confortos são ofertados a cidadãos "especiais". Quando a vergonha acaba, parlamentares recebem dinheiro público para custear passagens aéreas da cidade em que moram para a mesma cidade em que moram, ou para custear moradia, apesar de residirem em casa própria. Legisladores fazem seguros vitalícios de saúde, pagos com dinheiro público, mesmo para quando não tiverem mais mandatos a exercer, e mesmo que o sistema de saúde pública do País seja o de doentes espalhados pelos corredores dos hospitais por falta de leito, crianças morrendo em massa por falta de equipamentos, de medicamentos e de higiene nos hospitais, idosos morrendo nas filas de atendimento e tudo o mais que caracteriza o tipo de tratamento médico que o poder público brasileiro oferece à sua população. Quando a vergonha acaba, um tribunal superior é capaz de enviar ofícios a companhias aéreas ou a autoridades aeroportuárias para solicitar tratamento especial - que inclui dispensa de alfândega, de revista de malas - em favor de passageiro(a) que tenha por atributo o simples fato de ser amigo(a) de filho(a) de magistrado de tribunal superior. E é só mesmo quando a vergonha geral acaba que um sério e competente magistrado de instância superior, que tem a mais nobre função pública de assegurar o belo princípio constitucional do "todos são iguais perante a lei", torna-se capaz de aceitar, talvez "docemente constrangido", um descabido privilégio em proveito de amizades de sua própria família. Quando a vergonha acaba, lá em cima nos Poderes da República, a falta de vergonha se dissemina pela sociedade "abaixo", como uma virulenta pandemia, de rápido contágio e combate cada vez mais penoso e infrutífero. O desrespeito aos cidadãos, então, passa a ocorrer de forma generalizada, manifestando-se na decadência da qualidade dos serviços, no descaso geral do atendimento público, no desprezo aos direitos dos consumidores, na propaganda enganosa, na venda de produtos fraudados, na entrega de mercadorias com defeito e no completo descaso em relação ao treinamento dos que têm por função vender bens ou prestar serviço às pessoas. Ninguém liga para nada porque o descaso não acarreta consequência alguma. Assim, quando a vergonha acaba, revogam-se todos os controles de qualidade. É só quando a vergonha acaba que a maior fabricante de bebidas do País, e uma das maiores do mundo, tem a coragem de fazer aqui o que jamais ousaria em qualquer nação civilizada: usar um grande ídolo esportivo, nosso e mundial, para "passar" à sociedade, especialmente à juventude, a ideia de que quem toma sua marca de cerveja é mais guerreiro, é mais perseverante no trabalho e na superação das dificuldades, sabe lutar melhor pela vida, "não desiste nunca" e imbecilidades assemelhadas. E, no mesmo sentido, também já fez perder a vergonha um bom sambista popular brasileiro, que levou ao ridículo de tentar dar seu nome a um dos dias da semana - para nele aumentar o consumo de sua cerveja. É quando a vergonha acaba que a maior empresa de telefonia celular do País - que sempre se fez tão viva na comunicação - vende em suas lojas produtos maravilhosos que só mostram seu defeito quando o feliz freguês que o comprou chega em casa - a partir do que esse coitado terá de procurar uma inacessível "assistência técnica", passando a depender (por dias a fio) de quem nenhuma participação teve na relação de compra do cidadão com a loja, estabelecida na véspera. E é quando a vergonha acaba que a maior rede de varejo do País, aquela que tanto alardeia sua "dedicação total a você", vende um produto eletrônico com defeito que só aparece, coincidentemente, passadas as poucas horas durante as quais faria a troca na loja - obrigando, igualmente, o cidadão comprador a relacionar-se com uma desconhecida "assistência técnica", às vezes no cafundó do Judas, sem tempo algum para a "dedicação total a você". Quando a vergonha acaba, uma grande e centenária rede de drogarias, com serviço de entrega "em casa", faz venda por telefone de medicamentos que já acabaram em seu estoque - e cuja falta só "descobre" meia hora depois de efetuada a compra com cartão de crédito, obrigando o freguês ao estorno (sempre incerto) de valores já debitados em seu cartão e ao transtorno de sair atrás, às vezes em altas horas, de remédio que já julgava comprado - podendo essa droga de atendimento levá-lo às raias da loucura. Quando a vergonha acaba, uma grande montadora francesa, com marcante qualidade na suspensão de seus veículos - sendo famoso seu velho teste da cesta de ovos conduzida em estrada ruim, sem quebrar -, depois de fazer propaganda galáctica de seus carros novos, em suas concessionárias não aceita como parte de pagamento veículos de sua marca (embora aceite marcas concorrentes), deixando o freguês que caiu no seu conto da fidélité apenas com a propriedade de um invendável ferro-velho, celebrando bodas com sua inútil sucata. Enfim, até pessoas e empresas que sempre foram corretas, quando a vergonha acaba "lá em cima", também perdem a vergonha "cá em baixo". E nunca antes neste país houve tanta falta de vergonha como nos dias correntes. P. S. - Tu quoque, amigo Suplicy?! Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net