22 de agosto de 2014 | 02h05
Mudança em relação a quê?
Desde as ruas de 2013 não há político nem marqueteiro que tenha conseguido formular qualquer coisa de convincente. Mas existe uma chave para esse mistério. A única mudança que não merece aspas nem é unanimidade entre todas as que aparecem nas propostas dos candidatos é aquela que, inexplicavelmente, menos para os seus protagonistas, ninguém menciona.
Mais que propor, o partido de Dilma Rousseff impôs à mesa a carta de uma mudança daquelas que são para ser infinitas enquanto durarem. Continua em vigor, fazendo três meses agora, o Decreto Presidencial n.º 8.243, de 25/5/2014, assinado por ela, que revoga o sistema representativo eleito pelo voto universal e tira do Congresso Nacional as prerrogativas que são exclusivas dele numa democracia.
Não foi a única tentativa. Mas entre esta e a primeira muito mais coisa mudou no Brasil do que a incorporação de suítes especiais ao presídio da Papuda.
A medida da gravidade da intoxicação que acomete o País não está no fato de o PT ter apresentado uma nova modelagem do seu DNA antidemocrático desde sempre conhecido, mas na enormidade que é, depois de impô-lo ao Brasil na forma de um édito de sua majestade em pleno terceiro milênio, ele não ter sido mencionado uma única vez em todo o debate eleitoral, nem pelos candidatos, uns interpelando os outros, nem pela imprensa, cobrando de cada um que se posicione em relação a ele.
Quem, afinal, está em desacordo com isso?
A docilidade com que o Poder Legislativo segue permitindo que o seu pescoço permaneça acomodado no cepo de uma guilhotina com a lâmina já destravada, posto que decretada e não meramente proposta a execução está, é de arrepiar os cabelos.
O Congresso Nacional, vá lá, é o que foi feito dele. Mas, sendo ainda uma criatura da democracia, sempre acaba dando sinais de vida desde que a imprensa cumpra a sua função de fustigá-lo com os necessários rigor e pertinácia, tanto que esboçou reação antes que a Copa esvaziasse a pressão.
É assim mesmo que funciona.
Perseguir a corrupção faz, sim, parte do "métier". Mas o tema da quantidade de máculas carregada por cada candidato num quadro institucional que não admite trânsito isento de vício é insuficiente para criar uma distinção livre de argumentações teóricas desviantes, ainda que as diferenças de grau possíveis nesse quesito e suas funestas consequências sejam as que se conhecem. Essa linha de ação, portanto, mais serve para igualar coisas que são diferentes do que ajuda o eleitor a diferenciá-las. Não é por acaso que o "eu sou, mas quem não é?" foi transformado, desde a segunda semana do mensalão, praticamente na divisa armorial do brasão do lulismo.
Há valores muito mais importantes em jogo. E, no entanto, Eduardo Campos morreu a 53 dias da decisão sem nunca ter sido instado a nos contar como se posicionava diante desse édito tão cheio de consequências definitivas da contendora de quem já havia sido um aliado e um servidor. No país dos 30 e tantos partidos políticos, quase todos "socialistas", aliás, qual seria a diferença entre o "socialismo"do PT, o "socialismo" de Eduardo Campos e o "socialismo" de Marina Silva?
Ninguém disse nem jamais lhes foi perguntado.
O de Aécio Neves declara-se formalmente "democrático", "social-democracia" que seria. Mas mesmo a ele, como aos demais, não conviria perguntar diretamente, olho no olho do eleitor, como se posicionam em relação ao menos a algumas daquelas 521 alterações na Constituição da República que integram o "Plano Nacional de Direitos Humanos", programa oficial de governo do PT, que, segundo a nova "Política Nacional de Participação Social" decretada pelo Palácio, passarão a ser implementadas ou não segundo o que for decidido entre o presidente e os "movimentos sociais" que o secretário-geral da Presidência houver por bem selecionar?
Concordam, por exemplo, que todos os professores e alunos do País sejam submetidos a um programa de reeducação para entenderem qual a nova interpretação, que o governo exige que se aceite em ordem unida, do conceito de direitos humanos? Estão de acordo com que a confirmação ou não da posse de propriedades rurais ou urbanas invadidas deva sair das mãos do Poder Judiciário e passar às dos "movimentos sociais" que tomarem a iniciativa de invadi-las? Que todas as polícias do País passem a depender e obedecer exclusivamente ao presidente? Que os ungidos do senhor secretário passem a determinar que leis os representantes eleitos de todos os brasileiros poderão examinar, o que cada um de nós poderá ou não ler e a imprensa publicar?
E à própria candidata à reeleição, não cabe pedir-lhe que nos explique, ponto por ponto, por qual tipo de matemática se pode demonstrar ao eleitor que as novas Organizações Não Governamentais Organizadas pelo Governo (ONGOGs) o representam melhor que o representante em quem ele votou?
É da permanência ou não do Brasil no campo democrático que se trata. Há 12 anos o País tem vivido num empurra-empurra para fora, mediante todo tipo de expediente tipificado ou não no Código Penal, e de volta para dentro dele na undécima hora, e é isso que explica por que está ficando tão difícil trabalhar aqui. E a cada tentativa abortada o elemento de resistência tem sido sumariamente eliminado, tenha o peso institucional que tiver. O que esta eleição pode mudar é acabar de uma vez por todas com esse tipo de mudança, reverter os pedaços dela que nos foram impingidos ilegalmente e reafirmar como indestrutível o pacto deste país com a democracia para que todos possamos recomeçar a trabalhar em paz.
Fernão Lara Mesquita é jornalista e escreve em www.vespeiro.com.
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