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Quem ganha com esse truque

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Por Redação
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Embora pareça tratar-se de necessário aperfeiçoamento de normas de contabilidade pública, como o justificou o governo, o dispositivo inserido na Medida Provisória (MP) n.º 618 que permite às prefeituras excluir do cálculo da receita líquida os recursos obtidos com operações urbanas tem objetivos políticos e parece ter sido elaborado sob medida para beneficiar administrações petistas. É uma espécie de truque contábil para reduzir os compromissos financeiros de prefeituras endividadas, mas com volume expressivo de recursos gerados por autorizações para construir. A Prefeitura paulistana, chefiada pelo petista Fernando Haddad, está nessa situação.O fato de o dispositivo estar incluído numa MP que, na essência, trata de um assunto muito diferente - a injeção de R$ 30 bilhões no BNDES e na estatal Valec - já o torna intrigante. É como se, ao inseri-lo entre providências tipicamente financeiras envolvendo empresas estatais, o governo quisesse evitar que o assunto fosse tratado separadamente e com destaque. É curioso, no entanto, que, mesmo preenchendo apenas um entre os dez artigos da MP 618, esse dispositivo tenha merecido longa justificativa do governo.Ao permitir que as prefeituras excluam do cálculo das receitas líquidas reais correntes os recursos obtidos com a emissão de autorizações para construir - com a justificativa de que eles não têm a mesma natureza de impostos ou taxas -, a MP tem uma consequência sobre as finanças municipais que vai muito além da simples redução contábil da arrecadação.Embora valha para todos os municípios, o dispositivo cai como uma luva para prefeituras altamente endividadas, como é o caso da de São Paulo. Essas prefeituras são obrigadas a amortizar sua dívida anualmente de acordo com sua receita corrente líquida. Inovando a contabilidade pública, a MP reduz a base de cálculo do valor das prestações que as prefeituras devem pagar ao Tesouro Nacional, como previsto na rolagem das dívidas dos Estados e prefeituras em 2000. Neste ano, a Prefeitura paulistana não emitiu nenhum papel ligado à autorização para construir, mas tem um estoque de cerca de R$ 5 bilhões de autorizações concedidas no passado - convém destacar que, pela MP, a nova regra se aplica a títulos já emitidos. A dívida do Município de São Paulo com o Tesouro Nacional supera R$ 53 bilhões. Ela é corrigida pelo Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), calculado pela Fundação Getúlio Vargas, acrescida de juros de 9% ao ano. Deixando de contabilizar esses recursos como correntes, a Prefeitura de São Paulo poderá economizar até R$ 650 milhões nas prestações que tem de recolher ao Tesouro. Como disse o secretário municipal de Finanças, Marcos de Barros Cruz, "é uma economia eventual para todos os municípios que emitem esses títulos". Sim, mas nenhum está tão endividado como São Paulo. Além disso, o dispositivo tende a estimular outras prefeituras que porventura ainda não tenham recorrido a essa forma de amealhar recursos a fazê-lo, o que, se não for controlado, pode dar origem a uma farra de autorizações para construir. Ou seja, a MP pode estar estimulando a emissão de títulos similares por todas as prefeituras, especialmente das grandes cidadesMas esse não parece ser o único efeito danoso da MP para a austeridade das finanças públicas. Como noticiou o Estado (11/6), o artigo que beneficia as prefeituras provocou imediata reação no Congresso. Relator da lei complementar que altera todos os contratos de refinanciamento de dívidas entre o Tesouro e os Estados e municípios, o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha (RJ), já afirmou que vai apresentar uma emenda à MP 618.Cunha entende que, "se a justificativa deles é porque a receita é financeira, os royalties e participações especiais também são". Em um cálculo por alto, o deputado estima que, se a prefeitura do Rio de Janeiro conseguir abater essas receitas dos débitos ao Tesouro, teria uma poupança entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões.