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Radiografia de um acordo

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Por Carlos Alberto Di Franco
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O Brasil, não obstante o empenho dos paladinos da luta de classes, é um país tolerante. A miscigenação, traço característico da nossa cultura secular, é um fato, independentemente de questionamentos artificiais dos que querem reduzir a beleza humana do multicolorido racial ao artificialismo de uma pátria em preto e branco. Na religião, igualmente, o Brasil tem sido um modelo de convivência e tolerância. Ao contrário de muitas regiões do mundo, marcadas pelo fanatismo e pelo sectarismo religioso, o Brasil é um sugestivo caso de relação independente e harmoniosa entre religião e Estado.Foi o que se viu recentemente, quando a Câmara dos Deputados aprovou o acordo entre o Brasil e a Santa Sé, que agora vai para o Senado Federal, como último passo para a sanção presidencial. O conteúdo desse instrumento jurídico firmado por dois Estados soberanos é, estou convencido, um bom exemplo de como se pode, numa sociedade pluralista, harmonizar a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.Naturalmente, nem todos veem dessa forma. Respeito as opiniões contrárias. Parece-me que seria interessante analisar brevemente alguns pontos desse acordo, mostrando que está claramente inserido na nossa tradição de respeito à diversidade. Em primeiro lugar, o acordo não cria nenhum tipo de privilégio para a Igreja Católica. A leitura dos 20 artigos do tratado, que recomendo a todos (http://www2.mre.gov.br/dai/b_santa_04.htm), evidencia que o tom é reconhecer - e reafirmar - disposições que já estavam presentes de forma esparsa em nosso ordenamento jurídico. Por exemplo, o artigo 15 do tratado dispõe: "Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição brasileira." Trata-se de um reconhecimento daquilo que a Constituição já estabelecia, ao definir as limitações ao poder de tributar, sublinhando que "é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto" (artigo 150, VI, b). Reconhece-se que a liberdade religiosa é um direito fundamental, não podendo o Estado dificultar o seu exercício por meio da tributação, como também ocorre, por exemplo, em relação aos partidos políticos ou às entidades sindicais.O tratamento dado pelo acordo ao ensino religioso sofreu algumas críticas, na suposição de que feriria o caráter laico do Estado brasileiro. Tal visão, no entanto, não reflete a postura da Constituição brasileira, que estabelece que "o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental" (artigo 210, § 1º). O caráter laico do Estado está assegurado ao se definir que a matrícula é facultativa: o ensino religioso não é imposto a ninguém. O acordo reconhece a matrícula facultativa e vai além, ao estabelecer explicitamente que o ensino religioso não se refere apenas à religião católica, mas também às outras confissões religiosas (artigo 11, § 1º).Outro exemplo de saudável laicidade, que distingue o âmbito político-jurídico e o religioso, é o reconhecimento da natureza religiosa do vínculo dos ministros ordenados ou fiéis consagrados com as suas respectivas instituições religiosas e dioceses, não gerando, "por si mesmo, vínculo empregatício" (artigo 16 do acordo). Não se trata de eximir a Igreja Católica das obrigações trabalhistas, já que, por exemplo, um religioso poderá ter direitos trabalhistas perante a sua ordem ou congregação, mas não os terá em razão do vínculo religioso, assumido livremente por motivos espirituais, e não profissionais, mas por uma situação que gere esses direitos, de acordo com a lei brasileira. Situação similar ocorre entre dois cônjuges: pode haver vínculo trabalhista entre os dois, por razões profissionais, mas isso não significa entender que o vínculo oriundo do pacto matrimonial seja de natureza trabalhista ou que gere, por si mesmo, direitos trabalhistas.O Brasil e a Santa Sé, no mencionado acordo, também "reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro" (artigo 6º). Esse aspecto não enseja novidade a nenhum brasileiro. Basta citar, por exemplo, o Pátio do Colégio, em São Paulo, os Mosteiros de São Bento do Rio de Janeiro e de São Paulo, a Igreja e o Convento de São Francisco em Salvador, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), onde se encontram diversas esculturas do Aleijadinho e que é reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco. O Estado brasileiro não pode ser indiferente a esse patrimônio, já que seria desprezar a nossa própria História. Não se trata de afirmar que a religião católica é mais importante que as outras, mas simplesmente de reconhecer que o nosso passado está intimamente ligado à Igreja Católica e que é um bem para o Brasil a preservação desse patrimônio histórico-cultural.O acordo não se refere às verdades religiosas nem tem a menor pretensão de abordar o tema da "verdade", mas vem consolidar, num único instrumento, o estatuto jurídico da Igreja Católica, à qual pertencem 74% dos brasileiros (segundo dados da Fundação Getúlio Vargas). Um Estado laico pede transparência, reconhecimento das lícitas realidades sociais, respeito à liberdade religiosa. Nesse sentido, o acordo é um bom passo, dentro da nossa tradição de convivência pacífica e harmoniosa. Carlos Alberto Di Franco, doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, professor de Ética, é diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br) e da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com) E-mail: difranco@iics.org.br