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Opinião|Reforma do ensino superior

A flexibilidade ocupacional dos formandos precisa ser ampliada

Atualização:

Fala-se muito das deficiências do ensino básico (infantil, fundamental e médio) no Brasil, mas muito menos das do ensino superior. São pessoas deste último nível que discutem o ensino básico, mas sem atentar para as próprias deficiências do ensino superior, em que muitas dessas pessoas também atuam.

Não me queixo da educação recebida na USP e uma das razões é que também me permitiu passar por universidades de outros países, em particular dos EUA e do Reino Unido, onde aprendi que aqui há muito o que aprimorar. Mas nossas universidades resistem a adotar mudanças necessárias. Seus professores estão mais preocupados com suas carreiras, como também aconteceu comigo, do que em olhar para os lados, e para o mundo, e focar em mudanças em termos de ensino, pesquisa e outros serviços do setor.

Também há pouca preocupação quanto aos estudantes. No ensino, o papel da universidade é adicionar valor ao capital humano de seus alunos. E essa adição precisa ser ampliada. Pensar mais nos alunos é ainda mais importante neste mundo em rápidas transformações que afetam as ocupações do mercado de trabalho, por conta de acelerados avanços tecnológicos nas duas últimas décadas e novidades mais recentes como internet das coisas, inteligência artificial, e uso de grandes bases de dados, entre outras.

Falei de ocupações, e não de profissões, pois não compartilho a ideia, bastante difundida, de que muitas profissões desaparecerão. Sempre haverá a necessidade de médicos, psicólogos, engenheiros, advogados, economistas, administradores, biólogos, enfermeiros, veterinários, jornalistas, profissionais da educação e muitos mais. O que muda mais é a natureza das ocupações, ou de como são exercidas profissões como essas, diante de avanços como os citados. Também surgem novas ocupações, como uma que emergiu há umas duas décadas, a de webdesigner, que estrutura sites, blogs, redes, etc., e passou a ser exercida por profissionais de várias áreas. Pode ocorrer que na sua evolução algumas novas ocupações se consagrem no mundo do trabalho, e levem a novas profissões.

Mais ocupações, extinção de outras e mudanças no exercício das existentes vêm do lado da demanda de mão de obra. Do lado da oferta, é preciso que o ensino vá se adaptando a essas mudanças, em particular alterando a estrutura curricular dos cursos e a forma de ensinar. Torna-se indispensável a presença de currículos mais interdisciplinares que facilitem a flexibilidade ocupacional dos formandos.

Ajudaria muito nessa flexibilidade a criação de ciclos básicos de disciplinas comuns a vários departamentos de uma mesma faculdade. Na que passei no curso de graduação, e na qual lecionei, a de Economia, Administração e Contabilidade, da USP, deveria haver um ciclo básico de dois anos comum a essas três áreas, pois seus formandos frequentemente disputam as mesmas ocupações no mercado de trabalho. Disciplinas mais específicas de uma área seriam escolhidas ou aprofundadas nos anos seguintes.

Mas isso seria só um primeiro passo. Na USP, no seu câmpus no Butantã, sonho com prédios só para aulas e numa única área, com ciclos básicos que também permitissem o acesso a disciplinas de várias faculdades, escolas e institutos.

Tais ciclos não trariam apenas maior flexibilização ocupacional dos formandos, mas também um convívio social mais adequado à sociedade em que vivemos. Uma coisa é o convívio universitário restrito a colegas de departamento ou de uma unidade de ensino. Outra, muito melhor, seria com colegas de várias áreas, algo muito mais enriquecedor do ponto de vista cultural, além de levar a relacionamentos sociais que também ampliariam o leque ocupacional dos formandos. 

Por que tais ciclos não vêm? O que há é uma acomodação, com professores e dirigentes das instituições reagindo negativamente a mudanças. Elas precisam vir de lideranças que convençam os professores dessa necessidade. E os estudantes, por intermédio de suas entidades, também precisam pressionar por isso, pois seriam muito beneficiados.

Neste espaço, em 30 de março os professores Marco Zago e Vahan Agopyan, ex e atual reitor da USP, respectivamente, propuseram “fugir das especificidades curriculares (...), trabalhar em grupos multidisciplinares (...), liderar e aceitar a liderança de outrem”. E mais: “Não é exagero descrever o ambiente universitário como composto por estudantes da era digital e professores analógicos (no que diz respeito ao ensino-aprendizagem)”. E ainda: “É surpreendente que toda a comunidade acadêmica (professores, estudantes e técnicos), que gera e participa da revolução tecnológica e digital no dia a dia, no uso intensivo de smartphones, tablets, plataformas digitais, internet, streaming e televisão digital, por exemplo, continue ao mesmo tempo resistindo a incorporar essas mudanças na vida acadêmica”. E também: “A forma de transmitir o conteúdo nesse novo ambiente digital tem de ser muito diferente da transmissão de conteúdo em sala de aula. A utilização ingênua do formato clássico apenas transposto para formato digital não funciona ...”.

Somente divirjo quando afirmam que “muitas das profissões que conhecemos terão perdido seu papel.” Como disse, a dinâmica das mudanças está mais nas ocupações do que nas profissões. 

Enfim, o caminho é esse, e foi bom saber que o professor Zago continuará na USP, coordenando o Centro de Inovação. Desejo sucesso a esses dois líderes da universidade. Mas quando militei no movimento estudantil aprendi em discussões a expressão “divórcio cúpula-base”, como referência às divergências dentro das organizações atuantes nesse movimento. Torço para que esse divórcio não se verifique entre os que conduzem a USP e os demais professores.

Voltarei à reforma do ensino superior em outros artigos.

*ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR