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Regras fortes, mas sua implementação...

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Por André Meloni Nassar
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Em tempos de crise mundial e discussões sobre déficit fiscal do governo federal, deixamos de lado questões relacionadas à eficiência do Estado brasileiro. Minha impressão é que a complexidade desse tema é grande o suficiente para inibir reformas que, passado o sofrimento de negociá-las entre Poderes do Estado, burocratas do governo, setor privado e consumidores, os benefícios a partir de sua implementação seriam inegáveis. Além disso, avaliar a eficiência do Estado é algo complexo porque exige especificidade, ou seja, não há como medir se o governo federal está cumprindo e executando suas funções de forma eficiente sem entrar no detalhe dos serviços que devem ser providos por ele. Assim, um passo anterior é definir de forma precisa os serviços que devem ser analisados. O serviço que discuto, como exemplo para ilustrar um Estado com deficiências para cumprir as funções que ele mesmo coloca como suas, é o relacionado à garantia, ao longo das cadeias de produção, da segurança do alimento, sobretudo para produção de proteína animal. Avaliando as regulamentações que definem os padrões de boas práticas de produção na cadeia de produção animal, e conhecendo um pouco sobre sua implementação, encontramos mais um exemplo, dentre tantos e incontáveis, que corroboram a tese de que o Estado brasileiro é muito bom em cumprir seu papel de legislar, mas ineficiente na implementação e fiscalização de suas normas. Antes de entrar nos meandros desse tema, é importante salientar que o setor privado opera suas atividades produtivas dentro dos limites definidos pelo Estado, seguindo as regulamentações vigentes. Ou seja, um serviço "mal cumprido" pela autoridade regulatória ou fiscalizadora induz o setor privado a cumprir as regras de forma particular - cumprir porque as empresas, em princípio, não têm a intenção de pôr seu negócio em risco -, encontrando soluções individualizadas que nem sempre estão alinhadas com o que a autoridade tinha em mente. Assim, sinais imprecisos vindos do regulador central são entendidos e interpretados de maneira confusa pela fiscalização regional e pelo setor privado nas suas operações produtivas e de comercialização. Fica, no entanto, latente a incerteza quanto ao cumprimento da regra, em relação à autoridade fiscalizadora e à aceitação do comprador quanto à forma como o setor privado optou por cumpri-la. Sobretudo quando o comprador é exigente, como é o caso de países desenvolvidos, e requer a chancela da autoridade do governo do país exportador nos produtos vendidos. Nesse caso, um serviço "mal cumprido" põe em risco a credibilidade da autoridade regulatória e fiscalizadora. Como a falta de credibilidade ameaça os produtores, seus negócios dependem de uma autoridade com credibilidade. É, portanto, uma relação de dependência que deveria induzir a uma perfeita integração entre quem regula e fiscaliza - o Estado - e quem produz e sabe o que se passa no mercado consumidor. Não é assim que funciona, por enquanto, o Brasil no que diz respeito às questões de segurança do alimento. O exemplo mais interessante para discutir o tema da eficiência e da credibilidade do Estado é o caso dos produtos de origem animal. A produção de carnes e leite tem uma cadeia complexa, que começa na lavoura, com a produção de milho e farelo para rações, as quais são complementadas e finalizadas com micronutrientes para compor uma ração completa. A ração, especialmente no caso de suínos e aves, é a base da produção de carnes. É menos importante como fonte de alimento para os animais bovinos, que ainda se alimentam muito de pastagens, mas está também muito presente nos confinamentos e granjas leiteiras. Garantir que a carne é segura significa garantir não somente que ela foi produzida, abatida e processada de modo seguro, mas também que o animal foi alimentado com uma ração que não ponha em risco a segurança do produto final. Um dos procedimentos de segurança utilizados são as boas práticas de fabricação, como a aplicação de medidas higiênicas, sanitárias e operacionais no fluxo de produção. Técnicas para minimizar os riscos de contaminação e para garantir o controle de qualidade e a conformidade dos insumos e matérias-primas utilizados no processo produtivo também fazem parte do conceito geral de segurança. Tudo isso está perfeitamente normatizado, bem como o instrumento de avaliação e verificação. Isso significa que as empresas e os consumidores podem ficar tranquilos que a credibilidade do primeiro e a segurança do segundo estão garantidas? Não necessariamente. Como mencionei no início do artigo, não podemos acusar as autoridades da área de defesa animal de não serem capazes de definir boas regras e normas. Aliás, não podemos deixar de valorizar que nosso Estado normatiza e legisla bem. Isso demonstra que seu corpo de técnicos sabe identificar os problemas e as tendências que precisam ser constantemente incorporadas em regras e normas. O que sentimos no dia a dia dos negócios, no entanto, é que a implementação - ou aquilo que chamamos de pôr em prática uma norma - não é acompanhada pela mesma presteza e eficiência da definição das normas. Poderia o consumidor dimensionar quantos fiscais estão ativos e qual o contingente necessário para satisfação e eficiência? Por problemas estruturais do Estado brasileiro, que é muito grande na perspectiva da criação de regulamentos, mas pequeno quando o assunto é implementar e fiscalizar, a indústria de carnes e rações não mede esforços para operacionalizar as normas, apesar do elevado grau de incerteza quanto à atuação das autoridades fiscalizadoras. Boas regras garantem alimentos seguros aos consumidores. Porém, se mal implementadas, os mesmos consumidores podem ser levados a não acreditar nelas. André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). E-mail: amnassar@iconebrasil.org.br