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Relações nebulosas

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Por RAFAEL ALCADIPANIE E MARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA
3 min de leitura

Nos últimos dias veio à tona o que parece ter sido uma decisão da Siemens de denunciar supostos desvios e fraudes em licitações para a venda de equipamentos e serviços de manutenção ao Metrô de São Paulo e ao do Distrito Federal e de colaborar com as autoridades brasileiras a esse respeito. A empresa fazia parte de um cartel que, acredita-se, fraudaria licitações. Convém lembrar que a Siemens também tem frequentado o noticiário internacional por implicação em diversos casos de pagamento de propina para obtenção de contratos vantajosos no setor de telecomunicações em vários países, o que já lhe rendeu condenação - e pagamento de multas - na Justiça alemã e na americana, por envolvimento em corrupção. Isso revela o quanto a questão ética nas relações entre as corporações empresariais e agentes governamentais é um problema mundial e independe do estágio de desenvolvimento de cada país. Para além desse caso, na imprensa internacional surgiram denúncias de pagamento de propinas a médicos e membros do governo chinês com o intuito de abrir novos canais de vendas e aumentar as receitas da gigante GlaxoSmithKline, multinacional britânica do setor farmacêutico. Em julho, suspeitas também foram levantadas acerca de um esquema da Google, da Apple e da Amazon para sonegar impostos, nos Estados Unidos e na Europa. Estima-se que o Brasil deixe de arrecadar anualmente cerca de R$ 415 bilhões apenas por causa da sonegação. Num momento em que no País as pessoas começam a despertar para cobrar de governos e políticos boa conduta no tocante a gastos públicos, os casos acima citados evidenciam que não são somente os nossos governantes que merecem atenção. As empresas, cujo discurso corporativo ao longo dos últimos 20 anos se voltou para questões ligadas à responsabilidade social, precisam também ser escrutinadas e questionadas pela opinião pública quanto à conduta que adotam para a realização de seus negócios, muitas vezes feitos com governos, que são seus grandes clientes. Como se vê, algumas práticas no campo empresarial parecem guardar pouca relação com o discurso de cuidado com a sociedade - e também com o meio ambiente. O peso das grandes empresas e das corporações empresariais pode ser verificado de diferentes maneiras. Em 2011, das 100 maiores entidades econômicas mundiais, 51 eram corporações. As receitas de grandes empresas como a Shell e o Wall-Mart superam o produto interno bruto de países como Argentina, Tailândia e África do Sul. A força econômica de grandes empresas possibilita que elas influenciem fortemente governos para conseguirem ambientes de negócios mais favoráveis aos seus interesses. Em contextos como esses, as relações entre empresas e governos podem ficar bastante nebulosas. Por exemplo, pesquisa realizada pelo professor Steve Barley, da Universidade Stanford, mostra que nos Estados Unidos corporações podem tornar-se uma ameaça à democracia e ao interesse público quando se voltam para o lobby por legislações que as beneficiam em detrimento do interesse coletivo e capturam agências regulatórias, que deveriam controlar suas ações. No Reino Unido, o colunista Seumas Milne, do jornal The Guardian, advertiu recentemente que a influência e o excesso de poder das grandes corporações junto à classe política tinham o potencial de corromper o governo. A proximidade entre parlamentares e financiadores de campanhas políticas em troca da aprovação de benefícios legais para seus conglomerados, no Reino Unido, mostrou que dar transparência às relações entre doadores e políticos não é um problema exclusivamente brasileiro, como eventualmente muitos possam pensar. O caso Siemens, que como vimos tem alcance internacional, acaba sendo bem ilustrativo. O ponto central é que as empresas existem para maximizar o retorno financeiro a seus proprietários ou acionistas e a História mostra que muitas vezes elas atropelam a ética e o benefício maior da sociedade em nome de lucros mais altos. Em tese defendida na FGV-SP sobre Crimes Corporativos, Cintia Rodrigues mostra como empresas agem de maneira pouco ética na tentativa de evitar sanções do governo por práticas que tenham causado a morte de pessoas. E em Capitalismo de Laços Sergio Lazzarini expõe a influência do Estado no controle acionário e no financiamento das corporações brasileiras. O caso Eike Batista-império X é apenas um desses exemplos. Nessa mesma linha, estudos internacionais mostram como executivos ocupam posições ora na iniciativa privada, ora no governo e agem em ambas as organizações com o intuito de beneficiar as corporações. Estados e corporações, quando amalgamados, criam dificuldade para regular o poder das empresas. Se há agente público corrupto, existe um corruptor que em geral trabalha do outro lado, numa empresa interessada em fechar contratos vantajosos. Os supostos casos do Metrô de São Paulo e do Distrito Federal demonstram a urgente necessidade de lançar luzes e esclarecer, para o bem do interesse público, essa possível relação obscura. Entretanto, para além da investigação, é preciso aperfeiçoar mecanismos que dificultem ações que ameacem a integridade dos bens públicos. Um bom começo seria debater alterações na forma como as campanhas políticas são estruturadas e financiadas. Afinal, grande parte dos escândalos de corrupção no Brasil, e no mundo, têm que ver com o financiamento e o custo da política. Há, ainda, a necessidade de regulamentar a atividade do lobby no Brasil. Tema espinhoso, mas que tem de ser enfrentado. E, por fim, as empresas precisam praticar o seu discurso no dia a dia.

* RAFAEL ALCADIPANI É PH.D. EM MANAGEMENT SCIENCES PELA MANCHESTER BUSINESS SCHOOL E PROFESSOR DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DA FGV-SP.

* MARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA É DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA PUC-SP E PROFESSOR DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA FGV-SP.