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República de bananas

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Por Rubens Barbosa
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Durante uma rápida passagem por Londres na semana passada, conversei com amigos, políticos e membros do governo britânico sobre a crise desencadeada pelas revelações de irregularidades no uso de verbas utilizadas para complementar os salários dos parlamentares no exercício de seus mandatos. Pude, assim, avaliar a gravidade da situação e verificar a extensão do estrago causado à classe política pela divulgação dos atos explícitos de liberalidades cometidas por alguns representantes de todos os partidos no Parlamento britânico. Um informe a respeito dos abusos ocorridos desde 2004 deveria ser divulgado nos próximos meses, mas acabou vazando parcialmente quando o jornal Daily Telegraph obteve o relatório de forma controvertida. Nele constariam abusos cometidos por ministros (que, no caso da Inglaterra, por ser um regime parlamentarista, têm de ser necessariamente deputados); por membros do Partido Trabalhista, hoje no poder; e por representantes dos dois outros partidos, de oposição, o Conservador e o Liberal-Democrata. O mal que deveria ser feito de uma única vez, com a divulgação do relatório, vem sendo espalhado diariamente nos últimos 20 dias. Houve, de início, tentativa de negar ou de minimizar os fatos. Depois a culpa foi jogada na imprensa, responsabilizada pelo vazamento das informações. Outros insistiram em que aquelas ações, tão controvertidas, estavam tecnicamente dentro dos regulamentos e, por não serem proibidas, não seriam irregulares. A maior parte dos abusos no Legislativo inglês ocorreu em torno das verbas, de pouco mais de R$ 70 mil por ano, destinadas aos "benefícios para a segunda casa" - auxílio-moradia, em bom português -, distribuídas aos parlamentares que mantêm sua residência na cidade de origem, mas necessitam também de acomodações em Londres. Os parlamentares estão sendo denunciados por terem usado o auxílio-moradia para reformar suas próprias casas, pagar hipotecas, prestações de imóveis, comprar lâmpadas, biscoitos para cachorro, esterco de cavalo e até (o cúmulo do ridículo) filmes pornográficos e assento para privada. No meio do escândalo se descobriu que houve também fraude fiscal cometida por vários parlamentares. Os políticos britânicos não são, certamente, os mais bem remunerados do mundo: ganham por ano cerca de R$185 mil. Nos últimos 12 meses eles tiveram direito a um auxílio adicional de mais de R$ 400 mil para cobrir gastos de gabinete - incluindo o salário de assessores e despesas de moradia. A perda de confiança nos seus representantes explica a irritação e a forte reação dos eleitores contra essas liberalidades com o dinheiro público. Com mais de cem políticos envolvidos até aqui, o primeiro-ministro, Gordon Brown, foi forçado a pedir desculpas, em nome da classe política, e a anunciar uma reforma política, com regras mais rígidas e transparentes. O líder da oposição, David Cameron, pediu aos integrantes de seu partido que devolvam todo o dinheiro utilizado para cobrir despesas não autorizadas. O presidente da Câmara dos Comuns renunciou, o que não ocorria desde 1695. Meia dúzia de parlamentares já anunciou que não vai mais se candidatar e dois membros da Câmara dos Lordes foram suspensos (o primeiros casos em mais de 350 anos). O escândalo das mordomias parlamentares transformou-se numa grave crise de todo o sistema político britânico. O desgaste político do Partido Trabalhista, no poder há 12 anos (vários ministros deixaram de pagar impostos sobre ganhos de capital com a venda de suas casas em Londres), reflete-se nas pesquisas, que apontam para uma provável derrota nas próximas eleições. Quando fazemos a comparação com outro país tão nosso conhecido, onde todos os dias os jornais também revelam novos e graves abusos com o dinheiro do contribuinte, o que impressiona são as reduzidas cifras envolvidas no escândalo na Inglaterra e a marcada diferença entre as atitudes e a reação da população e dos governantes dos dois países. O salário anual dos deputados federais é de pouco mais de R$ 200 mil, não muito maior que os da Grã-Bretanha. Para gastos adicionais, contudo, os brasileiros dispõem de uma verba de cerca de R$ 1 milhão, mais que o dobro das recebidas pelos colegas britânicos, além daquele dinheiro extra para as passagens aéreas. No Brasil a sociedade civil, desiludida, não reage, nenhum político pede demissão e a ninguém ocorre pedir desculpas à sociedade. Reforma política para valer, nem pensar. Ao contrário, a maioria está-se lixando, os corruptos são prestigiados, porque ninguém pode ser punido até ser condenado (o que raramente acontece), e as responsabilidades são diluídas. Como ninguém no alto escalão sabe de nada, tudo se desculpa ou se ignora e a divulgação dos fatos e sua crítica são vistas como hipocrisia. A corrupção, na sociedade contemporânea, ocidental ou não, banalizou-se e se transformou numa forma de troca social, secreta, pela qual os detentores do poder (político ou administrativo) transformam em dinheiro, ou em outra benesse qualquer, o poder ou a influência que exercem em razão de seus mandatos e funções. Simon Jenkins, que conheci quando servi em Londres, escreveu em sua coluna no The Guardian que esse escândalo, sem precedentes, das despesas dos parlamentos britânicos é digno de uma República de bananas (em que países estaria pensando?). Como não se pode esperar que todos os homens sejam santos ou heróis, a solução tem de ser a definição de um conjunto de regras claras e rigorosas, a serem aplicadas com transparência e respeitadas. Como escreveu Albert Camus em A Queda, "quando as pessoas não têm caráter, é importante que haja um método". Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp