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Republicano

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Por DENIS LERRER ROSENFIELD
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Não foi das menores questões enfrentadas pela Suprema Corte a da perda de mandato parlamentar dos deputados condenados na Ação Penal 470, denominada mensalão. Diferentes interpretações constitucionais se confrontaram, todas fundamentadas em nossa Carta Maior.O voto vencedor no Supremo, por decisão apertada, mostra quanto o problema era dos mais espinhosos, não produzindo uma adesão imediata dos ministros. Argumentos existiam de ambas as partes. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, saiu em defesa do que entendia como prerrogativas do Poder Legislativo, escudado, nesse sentido, numa das interpretações. O paradoxo da situação, no entanto, salta à vista. Um parlamentar condenado, com trânsito em julgado, tendo perdido seus direitos políticos, por crimes cuja condenação ultrapassa quatro anos, não poderia, evidentemente, exercer o mandato que lhe foi conferido por um processo eleitoral. Tampouco faria sentido recomeçar todo o processo na Câmara, com advogados e direito de defesa, na medida em que esse direito já foi amplamente exercido no STF. Tal repetição daria lugar a uma crise institucional, como se o Supremo não fosse "supremo", mas derivado de um "processo jurídico" que seria feito pela Câmara, que teria a palavra final. Não caberia, pois, ao STF dirimir em caráter definitivo uma interpretação de cunho constitucional. A contradição é manifesta.Não se trata de uma situação corriqueira, não podendo ser equiparável à de crimes menores, como infrações de trânsito. O bom senso exige diferenciar infrações menores de crimes como corrupção passiva e ativa, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, implicando a perda de direitos políticos e elevadas condenações. A improbidade administrativa no manejo da coisa pública é cristalina, possui, aliás, legislação específica que determina a perda de mandato eletivo e o afastamento de cargo público.Princípios básicos de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, a moralidade da política, a normatização de um Estado propriamente republicano seriam violados. É como se uma legislação especial, que valeria somente para parlamentares, não se estendendo nem ao presidente da República, criasse uma classe de privilegiados, situados acima da lei geral.A questão tornou-se, nesse embate, tanto mais interessante por envolver questões de princípios e valores constitucionais, que foram arrolados do ponto de vista das diferentes interpretações. Questões essas que visaram a equacionamentos capazes de corrigir antinomias e contradições vigentes no próprio texto constitucional. No que diz respeito às prerrogativas do Poder Legislativo, foi pouco considerado publicamente um fato da maior relevância: o de que a Câmara dos Deputados poderia ter sustado o processo de seus parlamentares, conforme o disposto pela Emenda Constitucional (EC) 35/2001, que alterou o artigo 53 da Constituição federal. Consta no § 3.º: "Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação". Ou seja, os partidos políticos envolvidos no mensalão não exerceram essa sua prerrogativa, o que significa dizer que qualquer protesto posterior tem sua legitimidade em muito reduzida.Analisou, com rigor, o ministro Gilmar Mendes em seu voto: "Deve-se salientar, ainda, que o controle político do processo judicial contra parlamentares permanece nas mãos do Congresso Nacional, cujas Casas sempre poderão sustar o andamento da ação penal antes do advento de decisão definitiva, nos termos do artigo 53, § 3.º, da Constituição, com a redação dada pela EC 35/2001. Após a EC 35/2001, o Congresso perdeu a prerrogativa de autorizar o processamento de parlamentares. Todavia o constituinte derivado atribuiu ao Parlamento, até a decisão final do processo, o relevante poder de sustar o andamento de ações penais contra parlamentares". E os partidos nada fizeram, provavelmente por medo de suas consequências políticas perante a opinião pública.Compatibilizar o texto constitucional foi o esforço levado a cabo pelos ministros. Isto é, as normas da Constituição devem não ser incoerentes entre si, o que é uma aplicação básica do princípio lógico de não contradição. Se o pensamento não pode prescindir desse princípio, sob pena de cair na insensatez, o mesmo vale para a compatibilidade de normas constitucionais. O trabalho do Supremo teve, portanto, de recorrer a questões de fundamentação, apresentando uma hierarquia de seus bens jurídicos maiores, de modo que a sensatez exigida do pensamento pudesse alinhar-se com os maiores princípios republicanos, como a probidade administrativa, a isonomia e a moralidade política.Eis uma das maiores, se não a maior função de uma Corte Constitucional: mostrar que o Estado Democrático de Direito não pode ser equiparado a processos eleitorais. O voto popular não condena nem absolve ninguém, como alguns mais afoitos têm apregoado. Ele tem apenas a função de eleger representantes por período determinado, segundo a legislação vigente e em obediência à Constituição e aos princípios republicanos.Da mesma maneira que não faria o menor sentido atribuir a eleições o poder de mudar princípios fundamentais como o da igualdade entre homens e mulheres ou reintroduzir a discriminação religiosa ou de raças, tampouco faz sentido atribuir a processos eleitorais o poder de absolver deputados que cometeram crimes e foram condenados, com trânsito em julgado, pela Suprema Corte, com perda de direitos políticos.Seguir e aceitar a decisão do STF referente, no caso, à perda do mandato de deputados dignifica a representação parlamentar, em vez de diminuí-la. É a República que está em questão.   DENIS LERRER ROSENFIELD É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR