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Respeito ao dinheiro alheio

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Por Redação
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Em situação de grave crise fiscal, ao invés de cortar gastos, Estados e municípios optaram por uma solução que nada soluciona a disparidade entre receitas e despesas, e ainda cria um novo problema. Os entes federativos bateram à porta do Poder Legislativo – federal e estadual – para que lhes fosse autorizado o uso de recursos de depósitos judiciais para pagar suas contas. Ou seja, foram pedir para usar dinheiro que não lhes pertence. E o pior é que conseguiram essa autorização.

Em agosto do ano passado, foi sancionada a Lei Complementar 151, que prevê a transferência “para a conta única do Tesouro do Estado, do Distrito Federal ou do Município 70% (setenta por cento) do valor atualizado dos depósitos referentes aos processos judiciais e administrativos” nos quais esses entes sejam parte.

Como se não fosse suficiente tal anomalia, várias Assembleias Legislativas criaram leis estaduais ainda mais perigosas, permitindo que o Executivo gastasse valores referentes a depósitos judiciais relativos a processos em que o poder público nem é parte – um dinheiro que não é nem nunca será do Estado. Trata-se de recursos privados – de pessoas físicas ou de empresas – que o poder público está gastando como se fosse dele, na ilusão de dar uma solução para a queda de receitas. Esse expediente aumenta a dívida pública, agravando ainda mais a situação fiscal.

Em geral, tais leis estaduais estabelecem a transferência de até 70% do total dos depósitos às contas do Executivo estadual, mesmo porcentual da lei federal. Há casos, no entanto, em que esse limite é ainda maior. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Lei 14.738, de 24 de setembro de 2015, destina 95% dos valores relativos a depósitos judiciais da Justiça estadual à conta do Poder Executivo, sem fixar qualquer destinação.

Diante desse descalabro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) ações diretas de inconstitucionalidade contra essas leis estaduais. Foram concedidas liminares em três processos, suspendendo a aplicação das normas de Minas Gerais, Paraíba e Bahia. Estão pendentes de decisão as ações contra leis do Rio de Janeiro, Paraná, Alagoas, Rio Grande do Sul, Amazonas, Goiás e Mato Grosso do Sul – as últimas cinco ajuizadas em janeiro.

Segundo o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a transferência dos recursos referentes a depósitos judiciais para as contas estaduais configura uma forma de empréstimo compulsório. Além disso, põe em risco a viabilidade do recebimento dos valores depositados pelas partes no processo, que ficam dependentes da liquidez do fundo de reserva, bastante incerta, diante do histórico de Estados e de municípios que gastam mais do que têm, não se emendam e ainda vão buscar recursos nas contas dos outros.

“Por esse panorama, não há nem pode haver – diante do histórico de inadimplemento dos Estados-membros – certeza de que o beneficiário de alvará judicial logre de fato obter imediata liberação dos valores a que fizer jus. Se não conseguir, nada lhe restará, a não ser um crédito a ser honrado em futuro incerto – isso depois de anos para obter a satisfação de seu direito no processo originário e no de execução”, afirma Janot.

Em todas essas leis – seja a federal sejam as estaduais – há um vício de fundo, que viola o direito de propriedade, reconhecido expressamente na Constituição Federal. Ainda que esteja parado num banco oficial, o dinheiro não é do Estado e, portanto, em hipótese nenhuma ele pode ser usado como se dele fosse. Não são recursos orçamentários nem estão disponíveis. Cabe ao STF reconhecer a inconstitucionalidade dessas leis que transformam depósitos judiciais em recursos públicos. E é urgente a concessão de liminares, suspendendo tais normas. Conforme reportagem do Estado, 11 governadores sacaram em 2015 um total de R$ 16,9 bilhões de depósitos judiciais para pagar parcelas da dívida com a União, precatórios e até aposentadorias de servidores. Tudo isso com o dinheiro dos outros.