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Respeito ou desprezo ao voto do eleitor?

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Por Ruy Martins Altenfelder Silva
3 min de leitura

Artigo publicado no Estadão em 16/1 (A2) levanta uma oportuna questão que transcende o estreito âmbito do dia a dia da política e alcança o patamar mais elevado da ética e dos próprios fundamentos da democracia. O professor Gaudêncio Torquato, com a costumeira clareza, logo no título, A vaga é do partido ou da coligação?, deixa claro o tema a abordar em sua reflexão, acabando por concluir que, em caso de afastamento, o titular de uma cadeira na Câmara dos Deputados deve ser substituído pelo suplente mais votado da coligação a que pertence, e não pelo primeiro da lista de seu partido.O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema ao reconhecer o direito do primeiro suplente do partido, em resposta a mandado de segurança impetrado pelo PMDB. Apesar disso, o entendimento está longe do consenso. Alguns descartam a ideia de prevalência dos partidos, sob o argumento de que a lei permite a formação de coligações para efeitos eleitorais e, por consequência, estas passam a constituir uma pessoa jurídica pro tempore. De início, seria importante definir se esse tempo valeria apenas para o período da campanha ou se abrangeria toda a gestão dos candidatos eleitos para cargos majoritários de presidente, governador ou prefeito, em torno dos quais gravitam os partidos coligados. Afinal, é público e notório que as coligações são motivadas mais pelo aumento do horário gratuito da TV e pelo reforço dos cofres de campanha do que pela coincidência de princípios programáticos que, efetivamente, poderiam diferenciar um candidato de seus concorrentes.Esse cenário, assim descrito, suscita outra questão, que antecede o que o professor Torquato define como imbróglio da substituição do deputado titular, suscitado pelo afastamento de quase meia centena de deputados então recém-eleitos, que trocaram a cadeira de parlamentar por cargos nos Executivos federal e estaduais. Trata-se, aqui, de perguntar se é legítimo e ético, embora seja legal, um deputado ou um senador "virar as costas" a seus eleitores e aceitar convite para exercer outras funções - convite esse resultante, em boa parte dos casos, de um processo de loteamento de cargos públicos, no qual vale mais o peso financeiro e político do órgão cobiçado e menos a competência do escolhido.A resposta só pode ser negativa, considerando que, em última instância, o mandato é um contrato estabelecido entre o candidato e seus eleitores e sacramentado pela vontade das urnas. Ou seja, a eleição foi ganha pelo candidato que convenceu seus eleitores a lhe concederem seu voto. Numa análise técnica, ele se comprometeu a exercer o mandato legislativo por um contrato e não teria o direito de rescindir unilateralmente esse compromisso, numa atitude que não pode, sob nenhum aspecto, ser considerada moral ou ética.Usando os modernos conceitos de comunicação, não é difícil perceber que grande parte do eleitorado se ressente do desprezo ao seu voto. Somando-se a outras atitudes questionáveis, a sensação de voto desperdiçado contribui para arranhar ainda mais a imagem dos políticos perante a sociedade, que acaba por colocar na mesma cesta os bons e os maus mandatários. E, mais, esse conjunto de percepções negativas inevitavelmente deságua no aumento do descrédito das instituições republicanas.Sem detalhar demasiadamente as razões que levam à crescente avaliação negativa da classe política, é perceptível que está vencendo o prazo para que integrantes dos três Poderes - legitimados pelo voto ou, quando não eleitos, por sua postura cidadã e republicana (há, sim, bons políticos, e não são poucos, embora tenham visibilidade muito menor do que os maus) - empreendam efetivamente a reforma política possível no País. Possível, sim, mas que também atenda às aspirações dos milhões de brasileiros cansados da corrupção, dos desmandos, do estilo "só lembrar do eleitor durante a campanha", das ambições escancaradas e desligadas dos interesses maiores da Nação.Embora não tenham o poder de legislar, os chefes de Executivo poderiam começar dando um bom exemplo: bastaria não convidar deputados, coincidentemente quase sempre os mais bem votados, para ocupar o comando de Ministérios, secretarias, agências reguladoras, empresas públicas ou de economia mista. Outro exemplo poderia vir do Congresso Nacional, onde o projeto de reforma política já dá os primeiros passos, mas numa abordagem que ainda está distante de contemplar os pontos realmente relevantes, entre os quais se incluem a mudança do sistema de voto, o financiamento das campanhas, a fidelidade partidária, etc.Os brasileiros já dão sinais de que têm consciência de que chegou o momento de repensar o Brasil. Essa tendência se manifesta, até com certa impaciência, na reivindicação por respeito aos direitos do cidadão; nos movimentos em defesa da ética, como aconteceu recentemente com a Lei da Ficha Limpa, resultado de iniciativa popular que empurrou a decisão do Congresso; no crescente acompanhamento do desempenho dos legisladores pari passu pelos eleitores; na expansão de entidades do terceiro setor, alimentada pela perda de paciência com a omissão do Estado na solução de graves problemas nacionais; na rejeição pelas urnas, ainda que parcial, dos candidatos ficha-suja - e por aí vai. Falta agora aos representantes do povo, com o faro político que devem ter ou desenvolver, alinhar-se às aspirações do eleitorado e contribuir efetivamente para a construção do Brasil do século 21.Em tempo: embora contrário à prática de convite a deputados para cargos do Executivo, sou de opinião de que, quando o afastamento é inevitável, deve ser convocado o primeiro da lista de suplentes do partido, e não da coligação, visto que essa opção, embora não a ideal, é a que mais se aproxima do respeito ao voto dos eleitores.PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS. E-MAIL: RUYALTENFELDER@UOL.COM.BR