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Opinião|Revelação e ocultação

Atualização:

"As violações aos direitos humanos devem ser condenadas quaisquer que sejam as credenciais de luta do perpetrador"Arcebispo Desmond Tutu No dia 10 de dezembro a presidente Dilma Rousseff recebeu o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre a violação de direitos humanos no período de 1946 a 1988, com ênfase no regime militar. A presidente disse que examinará as recomendações e propostas, que a conquista da democracia decorreu de lutas políticas e de "pactos e acordos nacionais" que reconhece e valoriza e que tem "absoluta aversão (...) aos autoritarismos e às ditaduras de qualquer espécie"; prestou homenagem aos "familiares de mortos e desaparecidos", saudou o "acesso integral à verdade histórica" e fez uma advertência que impõe um limite às pretensões da CNV: "A verdade não significa revanchismo. A verdade não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas". Como em outras ocasiões, a presidente Dilma comprometeu-se (sem total clareza) com a anistia, lei e condição política que a CNV, declaradamente, pretende superar. Tanto é que encontramos no relatório final serem "inadmissíveis as disposições de anistia, de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam obstruir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos". O relatório expressa virtudes e méritos da Comissão Nacional da Verdade, suas conexões internacionais e nacionais, a cooperação com dezenas de comissões estaduais, municipais, universitárias, o número elevado de depoimentos, a imensa pesquisa documental e bibliográfica. Analisa o sistema repressivo que historiadores, cientistas sociais e jornalistas já haviam desnudado: a tortura e outros crimes cometidos sob a égide do Estado no regime militar tiveram caráter institucional. Revela o nome de 434 mortos e desaparecidos (entre 1950 e 1985) e de 377 civis e militares que a CNV responsabiliza como operadores diretos (repressores e chefes imediatos) ou autoridades funcionais, tais como presidentes da República, ministros civis e militares, comandantes de diversos escalões, governadores e outras autoridades. O relatório final é importante pelo que revela e também pelo que omite - que é precisamente a violação dos direitos humanos por organizações da sociedade, tanto as revolucionárias de esquerda quanto as de direita que apoiaram a ditadura militar por meios violentos. Na verdade, a CNV não abre o "acesso integral à verdade histórica". Por investigar exclusivamente a responsabilidade do Estado, a CNV descumpre a Lei n.º 12.528. Outras vítimas da violência política não foram identificadas, mas sabemos que existem. Não foram convidados ao palco dessa história oficial. Para fundamentar a investigação unilateral - omissão pela qual deveria ser convocada a responder ao Poder Legislativo - a CNV argumentou que nenhuma comissão da verdade havia investigado os dois lados do conflito político. Não é verdade. As comissões da Guatemala, do Peru, do Chile e da África do Sul o fizeram. Outra tese é que os opositores da ditadura já foram punidos, argumento que denota a intenção punitiva dos membros da CNV. Ainda, a comissão bebeu da tese de que o Brasil vive uma transição política que somente será concluída com o fim da anistia e com o julgamento de servidores implicados na repressão. Ora, é falsa a tese da transição incompleta, uma vez que a Constituição de 1988 funda o Estado Democrático de Direito. A CNV não investigou os crimes contra os direitos humanos dos grupos armados da esquerda revolucionária, a saber: atos de terrorismo, assassinato de policiais e militares, de membros das próprias organizações clandestinas, sequestro, assalto a bancos. E tampouco os crimes das organizações de direita, cujos militantes mais destacados provinham dos quadros de governo. Não tomou depoimentos sobre crimes atribuídos às forças guerrilheiras na selva do Araguaia, nem sobre a "justiça revolucionária" que produziu assassinatos de membros das organizações revolucionárias, e de inimigos também, no processo de guerrilha urbana. Os agentes públicos (e seus aliados de organizações de direta) violaram os direitos humanos na defesa do Estado, ao passo que a esquerda armada violou direitos humanos no confronto com o Estado. Esses inimigos militaristas se condicionaram mutuamente, em que pese a desproporção dos meios e dos resultados fatídicos. Todavia toda a verdade deveria ter sido pesquisada e revelada. Nada justifica a omissão, nem mesmo a alegada escassez de tempo. Em suma, a CNV produziu conhecimento e revelação sobre as vítimas da ditadura. E destinou ao desconhecimento as vítimas das ações armadas contra o regime militar. Isso para operar a Justiça de Transição, a respeito da qual não há referência legal na tramitação da Lei n.º 12.528, mas que consta do relatório final. A possibilidade de superação dessa falta da Comissão da Verdade me sugere quatro iniciativas presidenciais: Que a presidente Dilma Rousseff assuma posição inequivocamente a favor da anistia política; que protagonize um pedido de desculpas pela violência estatal e pela violência contra o Estado, as quais violaram direitos humanos e produziram vítimas e sofrimento - a chefe de Estado tem exclusiva e pertinente autoridade para falar em nome do Brasil; que a presidente proponha a criação de uma comissão para investigar os crimes cometidos pelos grupos armados de esquerda e seus antagônicos de direita no plano da sociedade; que o Estado ampare adequadamente as vítimas - e os familiares - da violência política de qualquer orientação e procedência. * CIENTISTA POLÍTICO

Opinião por Eliézer Rizzo de Oliveira