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'Rubicão' da imprensa britânica

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Por Redação
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Um acordo entre os principais partidos da Grã-Bretanha abriu caminho para a instituição de um código de conduta que imporá pesadas sanções a jornais que cometerem abusos. As maiores associações de imprensa do país reagiram com preocupação. Elas concordam que o atual sistema de autorregulamentação requer melhorias e defendem que a irresponsabilidade jornalística deve ser castigada com rigor, mas não aceitam que essa punição seja imposta por uma entidade vinculada, ainda que apenas parcialmente, ao Estado. Para o jornal The Telegraph, "os parlamentares cruzaram o Rubicão da regulamentação da imprensa", isto é, avalizaram o restabelecimento da normatização estatal dos jornais após 318 anos de total autonomia.Essa regulamentação é resultado do escândalo causado pelo jornal News of the World, do magnata Rupert Murdoch. Em julho de 2011, a publicação foi fechada, depois de 138 anos de existência, diante da revelação de que seus jornalistas e sua direção estavam envolvidos na violação do sigilo telefônico de artistas, políticos e integrantes da família real, entre outras pessoas. O número de vítimas da sanha desse jornalismo de esgoto chegou às centenas, inclusive uma menina de 13 anos, Milly Dowler, que havia sido sequestrada e assassinada. O jornal grampeou o celular de Milly e chegou a apagar mensagens do aparelho, dando a impressão, para a família e para a polícia, de que ela ainda estava viva, prolongando o drama para vender mais alguns milhões de exemplares do News of the World.Fechado o jornal por decisão de Murdoch, foi instaurado um inquérito, a pedido do governo, cujas conclusões deveriam servir para encontrar mecanismos mais eficientes para conter o sensacionalismo dos tabloides. O relatório final recomendou o estabelecimento de um organismo independente dos jornais para fiscalizá-los, uma vez que, na opinião de representantes de vítimas da imprensa irresponsável, o atual sistema é totalmente falho. Movidos pelo clamor popular, que não costuma ser bom conselheiro, os principais partidos acertaram então a criação de uma entidade que, uma vez oficializada, terá poder de aplicar multas de até 1 milhão de libras, cerca de R$ 3 milhões, e de mandar publicar retratações com destaque. Os jornais não serão obrigados a aderir ao sistema, mas os que ficarem de fora sofrerão penas ainda mais severas.A regulamentação não se dará na forma de lei comum, mas de uma Carta Real, por meio da qual a rainha autoriza a abertura de novas instituições. Para alterar esse estatuto, é necessário o apoio de dois terços do Parlamento. Segundo os defensores do novo regime, tal cláusula dificultará a adoção de emendas que, no futuro, possam tornar ainda mais rígida a regulamentação da imprensa.Essas garantias não bastaram para tranquilizar as empresas de comunicação, para as quais o novo código, se aprovado, dará às autoridades instrumentos para prejudicar jornais que julguem inconvenientes. A Newspaper Society, que representa 1.100 jornais, disse que as multas milionárias serão um "fardo pesado demais" para muitos veículos e que "uma imprensa não pode ser livre se tiver de prestar contas a um órgão regulador reconhecido pelo Estado". A Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) seguiu a mesma linha: "Uma entidade reguladora estabelecida pelo governo, não importa quão independente seja, ameaça a liberdade de expressão". Para a OSCE, o caso do News of the World deveria ser tratado como uma questão criminal, e não como desculpa para constranger toda a imprensa.No século 18, os libelistas que expuseram os podres da corte francesa às vésperas da revolução e que, por essa razão, foram perseguidos em seu país, encontraram total liberdade de atuação justamente na Inglaterra - onde, desde 1695, não havia nenhum empecilho ao trabalho da imprensa. Não fosse isso, talvez a realeza francesa tivesse preservado a cabeça. No resto do mundo, os políticos e as autoridades que têm algo a esconder nunca gostaram da imprensa livre e sempre procuram meios para combatê-la. Esse "costume", infelizmente, parece ter chegado à Grã-Bretanha.