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Opinião|Sangue por nada

Quem tem vivido do sistema de exploração que custa tantas vidas não tem remissão

Atualização:

O que esmaga é a consciência do desperdício que essa tragédia é. Não há dúvidas transcendentais em debate, ninguém que precise ser convencido do que quer que seja. Não fazer é morte certa. Todas as contas estão feitas. Todas as respostas estão dadas, todos os remédios são conhecidos. Nós não os tomamos por deliberação soberana de quem manda no Brasil. Nada está oculto. Tudo é sexo explícito. Tudo é imposição e força. Ver quem faz barulho mais alto.

O mundo que domesticou seus políticos, que lhes tira os mandatos com mais facilidade do que os põe, que premia o esforço para exorcizar o privilégio se despede da pré-história da humanidade com carências materiais na velocidade da inteligência artificial. Nós damos marcha à ré na necessidade para que a casta que nos dita as leis que criminalizam como “desacato” qualquer cobrança que ousemos dirigir-lhe não se tenha de abalançar da eterna imunidade às crises que fabrica.

Em um século a partir de 1950 a população global terá crescido 3,7 xs. A de 60 anos para cima, 10 xs. A de 80 anos e mais 27 xs. Mas nós nos deparamos com esse salto da humanidade ainda cavalgados pelo modelo de opressão que a democracia pôs fora da lei pelo mundo afora. O mais acabado retrato dele aparece nas contas da Previdência. Um milhão de funcionários da União, todos eles na faixa dos 1% mais ricos do País, e entre esses os juízes e os promotores, campeões dos campeões, na faixa dos 0,1% mais ricos do País (Ipea), geraram um déficit nas contas da Previdência (R$ 90,7 bi) maior que o da soma dos 33 milhões de plebeus aposentados do setor privado (R$ 85 bi) em 2016. Quase 60% da metade do PIB de que o Estado se apropria vai para os funcionários aposentados e não basta. Outros 12% pagam os que ainda nos “prestam serviços”. Um cálculo baseado no mesmo critério do Índice de Gini, que mede as desigualdades de renda e qualidade de vida de um determinado grupo (quanto mais próximo de 1, mais desigual) é terminativo. O índice geral de desigualdade do Brasil é de 0,563 ponto e o do universo inteiro de aposentados privados, de 0,474 (na aposentadoria somos igualados na pobreza). Mas o do universo dos funcionários públicos aposentados é de 0,822.

Isso quer dizer matemática e resumidamente o seguinte: dentro daquela minoria do milhão de aposentados do setor público que pesam mais que os 33 milhões de aposentados do setor privado somados, uma minoria ainda mais ínfima se distancia dos demais numa proporção que, se já é obscena comparada à de seus pares, é abissal quando posta ao lado da dos miseráveis cá de fora. Automatizando a multiplicação de despesas pelos expedientes de “petrificar” novos “direitos adquiridos” autoatribuídos numa sequência sem fim, de desdobrar salários tributáveis numa infinidade de “auxílios” não tributáveis anualmente “corrigidos” por índices maiores que a inflação, de estender tudo isso a funcionários ativos e inativos, mas deixando sempre aberta a cova rasa que nos cabe no latifúndio do orçamento público para os “ajustes” que cada golpe desses matematicamente implica; foi assim que o Brasil foi sendo empurrado para o presente quadro de desastre nacional. Entre 2014 e 2016, os dois anos mais sufocantes da história da miséria brasileira, essa corte confiscou do favelão nacional mais R$ 8,8 bilhões em “cortes de despesas dos Estados” com educação, saúde e segurança pública, enquanto embolsava R$ 8,6 bilhões em aumentos automáticos “imexíveis” de proventos variados. Uma coisa pela outra. Na União e nos municípios foi ainda pior.

Agora é rever essa divisão ou morrer. E como não existe argumento capaz de deixar a menor dúvida sobre quem tem o que entregar e quem tem o que receber, a saída dos devedores foi reduzir o debate político a essa gritaria que ele virou. Literalmente na véspera de ser aprovada no Congresso a primeira reforma a tocar de leve os “direitos adquiridos” da privilegiatura, emerge do Ministério Público do dr. Janot a gravação que, hoje está provado, apagou a última fronteira entre “mocinhos” e “bandidos” do faroeste brasileiro, para enterrar, junto com a reforma da Previdência, o mais eletrizante capítulo da Lava Jato, que acabara de ser aberto – o da Operação Greenfield, que revelaria ao País, daqui até à eleição do tudo ou nada de 2018, como foi que, muito além dos “pequenos furtos” dos tempos em que ainda era preciso fazer uma obra pública ou comprar uma plataforma de petróleo para roubar o Brasil, o lulismo fez da família Batista e mais meia dúzia de genocidas e párias do mundo civilizado sócios dos fundos de pensão das estatais, primeiro, e do BNDES, do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional, depois, para montar uma lavanderia já devidamente abarrotada para lavar dinheiro sujo espalhada por 30 países do mundo.

Por maiores que sejam as culpas no passado do presidente provisório, trocar a Operação Greenfield e o futuro do Brasil por elas não é só um péssimo negócio, é um negócio leonino. O jogo que corre, de ocultar ou expor pedaços do banco de grampos do rei dos bandidos, é a descrição do fulcro da doença, e não o caminho da cura. O último sinal de saúde no ar é, aliás, o pouco que tal expediente engana a esta altura. Mas a impotência do brasileiro como cidadão faz dessa clareza prostração... ou esse mergulho no nada que são os nossos 62 mil trucidados à bala por ano, e subindo.

Toda essa carnificina é um trágico desperdício. É inadmissivelmente anacrônico fazer-se pobre desse tanto e absurdamente estúpido morrer pelo nada por que se mata aqui. Quem tem vivido do sistema de exploração que custa esse preço é o que é, não tem remissão. Mas é sobre a cabeça de todos quantos sabem que é disso que se trata e não o dizem; é sobre a cabeça de todos quantos fingem que esse é um problema “do governo Temer”, e não um problema do Brasil; é sobre a cabeça de quem tem o poder de fazer isso cessar e não faz que recairá o sangue todo que vai custar darmos mais uma volta nesse círculo infernal, mesmo sabendo todos qual é a única saída que existe.

*Jornalista, escreve em www.vespeiro.com

Opinião por Fernão Lara Mesquita