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Saúde, solidariedade e voto

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Por Gaudêncio Torquato
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"Os povos gostam do espetáculo; por meio dele dominamos seu espírito e seu coração." O pensamento é de Luís XIV, ele mesmo um espetáculo, no verão de 1664, quando, vestindo couraça dourada e sobre um cavalo enfeitado de diamantes, desfilou em Versalhes no cortejo da peça A Princesa de Élida. O Rei Sol intuía que a política, para dominar as massas, deveria imitar o teatro, adotar os dribles cênicos, incorporar os elementos dramáticos, como o que se consegue, por exemplo, com o efeito da "arena" - quando o político, na posição de mártir na fossa dos leões, mobiliza instintos dos espectadores, carreando simpatia, solidariedade, apoio. Usando esse painel psicológico, o produtor de TV Roger Ailes, em 1968, jogou seu candidato, Richard Nixon, no meio de uma plataforma parecida com uma arena para enfrentar dez leões, aliás, interlocutores. Obteve sucesso. O acossado Nixon ganhou a simpatia dos telespectadores. Políticos como animais circenses acorrem aos palcos da telecracia (democracia modelada pela TV), fazendo festa aos olhos das multidões. Este é o espetáculo a que o Brasil passará a assistir nos próximos meses e que terá como atriz principal a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. A ministra entra fragilizada no centro do circo por conta da inevitável cobertura midiática do novo capítulo da história de sua pré-candidatura à Presidência da República em 2010. Queira ou não, Dilma Rousseff acenderá a pira política, seja porque a doença de uma figura exponencial e, ainda por cima, escolhida pelo presidente Lula para lhe suceder assume alta significação social, seja porque o tabuleiro partidário passará a movimentar suas peças de acordo com a evolução do quadro da ministra. De início, uma constatação: política é teatro, mas também guerra. Diversão para uns, destruição para outros. Enquanto guerra, objetiva a destruição do inimigo e a conquista do poder; enquanto drama ou tragédia, procura envolver os espectadores na trama, mexer com seus instintos, aguçar curiosidade, desferir golpes psíquicos capazes de identificá-los com os atores. É duro constatar: os partidos acenderam seus pavios ante a situação vivida pela ministra; caso a situação seja debelada, como apontam os prognósticos para essa enfermidade, Dilma será homenageada festivamente por corações plenos de solidariedade. Vale lembrar que o território privado de um perfil político proeminente precisa ser compartilhado pela esfera pública, pois suas atitudes e palavras geram efeitos sobre a vida institucional. Esse é o preço pago por militantes do universo político. Nesse sentido, a mãe do PAC foi exemplar no dever de dar divulgação ao mal que a aflige. Há, no entanto, limites que devem ser observados, com ênfase para as abordagens midiáticas que podem causar insuperáveis danos à integridade física e psicológica dos atores. A imprensa não pode e não deve exagerar na cobertura. Dito isto, resta aduzir: contendores da arena política se sujeitam às regras do jogo. Boletins de saúde, por exemplo, passam a ser extensões da rotina de quem está às voltas com tratamento médico. A tarefa de driblar a verdade impõe sacrifícios que não valem a pena. John Kennedy padecia da coluna vertebral, em consequência de danos sofridos na 2ª Guerra, e era obrigado a usar um colete dorsal. Um permanente sorriso compunha a imagem de um jovem líder charmoso, identificado com a Nova América. Ao regressar aos hotéis, durante a campanha de 1960, livrava-se do cinturão e mergulhava num banho quente para aliviar as dores. Não guardou segredo por muito tempo. Depois de procurar esconder, Dilson Funaro, ministro da Fazenda, enfrentou com galhardia, em 1986, a recidiva de um câncer linfático, descoberto em 1982. O drama comoveu o País. Morreu em 1989. O tiro poderá sair pela culatra para manipuladores que usam a saúde como arma de marketing. Sobre isso, as visões diferem. A primeira envolve a tese da dessacralização do poder. Apoia-se na hipótese de que as pessoas comuns tendem ao igualitarismo, identificando-se com personalidades que mostram sua "dimensão humana". Enxergam no herói inexpugnável, insubstituível, uma condição comum, que lhes é peculiar. Projetando nele sua situação, identificam-se com a identidade fragilizada. Estabelece-se, assim, um processo catártico, que poderá disparar um conjunto de atitudes, com destaque para a caridade, a comoção, a solidariedade, o apoio. José Alencar, o vice-presidente da República, é ícone nesse campo. Tal engenharia psíquica será tão mais eficaz quanto mais exuberante seja o espetáculo midiático. Emoções ao vivo e em cores que fluem dos corações de "heróis humanizados" são capazes de fazer derramar cascatas de lágrimas de telespectadores. Aqui mora o drible psicológico. Solidariedade não implica necessariamente transferência de voto. A exploração da doença não resulta em fortaleza eleitoral de candidatos. Nesse caso, o psiquismo social desenvolve outra equação, com foco em resultados. Os eleitores tendem a escolher candidatos que lhes acenem com melhoria de vida. O olhar para o futuro divisa melhor emprego, salário, alimento, saúde, moradia, etc. O bom candidato é aquele que desperta sonhos, alimenta esperanças. A elaboração cognitiva percorre um caminho ascendente. Já um candidato de saúde frágil dispara um sinal de alerta: poderá esmorecer antes de cumprir a missão. Atenção: essas visões não podem ser entendidas como dogma. Dependem de climas e circunstâncias. Ganham impactos maiores ou menores nos diversos segmentos sociais. Em suma, é cedo para apostar na fragilidade ou no fortalecimento da pré-candidatura da ministra, que apenas inicia rigoroso processo quimioterápico. Até o momento, o único registro de nota é a mutação suave de sua identidade: a mulher de ferro, autoritária, sucedânea do homem de pulso, dá lugar a um perfil humanizado. A afirmação agressiva do eu diminui ante a expressão coletiva do nós. Sai do casulo e passa a perambular no meio das multidões. Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de comunicação