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Se fosse um emergente

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Por Ilan Goldfajn
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Parece, mas não é. Os sintomas são costumeiros; o país emissor, não. O governo leiloa seus títulos e os investidores exigem juros maiores e prazos menores para detê-los. Os estrangeiros encontram-se cada vez mais ariscos com suas posições. A moeda deprecia-se. O banco central não sabe se compra de volta os títulos do governo para deter a subida dos juros. Não se trata de uma crise de economia emergente. Mas, sim, da maior economia do mundo, que enfrenta mais um desafio nesta crise. Quais são as causas e consequências desse fenômeno? Estariam os investidores já no processo de realocação de investimentos fora dos ativos em dólar, o que explicaria em parte esse novo fluxo de recursos para o Brasil e a apreciação do real? Os juros dos títulos de dez anos nos Estados Unidos subiram de 2,2%, no começo do ano, para 3,6% , esta semana. Há várias interpretações para essa subida, algumas mais otimistas que outras. Em primeiro lugar, a subida de juros poderia estar refletindo alívio por o pior da crise financeira ter ficado para trás. Com isso estaria havendo apenas uma correção de uma distorção anterior: os juros estavam muito baixos em função da compra exagerada de títulos americanos pelos investidores em busca de um porto seguro durante a crise (isso mesmo: paradoxalmente, os títulos do país centro da crise foram considerados os mais seguros!). Agora há espaço para um refluxo natural dos títulos americanos, o que pressiona os juros a voltarem a patamares mais elevados. Em segundo lugar, a percepção de alívio pode ser na economia. O pior da recessão pode ter ficado para trás. Os juros sobem porque não há necessidade de juros tão baixos para dar suporte à economia. Como os títulos são mais longos (dez anos), já estão embutindo subida de juros no futuro mais distante. Mas há interpretações menos benignas. Vejamos. Uma terceira interpretação é a de que os detentores dos títulos perceberam que a inflação terá de subir no futuro mais distante, o que já eleva hoje os juros nominais mais longos. Os custos elevadíssimos dos resgates no sistema financeiro e dos estímulos à economia terão de ser pagos. Não há milagre. Só falta definir como será esse acerto de contas. Poderá ser o contribuinte instado a pagar mais impostos e receber menos isenções. Ou o governo, cortando seus gastos e oferecendo menos bens e serviços à população. Alternativamente, na ausência de consenso político na definição de como a conta será paga, a economia deverá encontrar seu caminho, taxando todos com um aumento da inflação. Finalmente, uma quarta interpretação é ainda mais pessimista. Interpreta a subida de juros como mais um sintoma de incipiente fuga dos investidores de ativos denominados em dólar. A fuga decorreria do maior risco fiscal nos Estados Unidos (levando ao downgrade da dívida americana, a exemplo da inglesa, ocorrido há duas semanas) e da provável depreciação da moeda americana para corrigir o déficit externo americano (tanto a depreciação quanto a correção do déficit já em curso). A realocação de apenas uma parte pequena dos recursos dos investidores - ou apenas do dinheiro novo à disposição - já seria suficiente para elevar os juros dos títulos e depreciar o dólar, como estamos observando. É relevante distinguir o que está ocorrendo das diferentes interpretações possíveis. Uma correção de um exagero passado ou um alívio na economia, como nas primeiras duas interpretações, são fenômenos benignos. Não deveríamos observar o prosseguimento do processo de elevação de juros por muito tempo, nem há risco envolvido para a economia americana e mundial. Isso se as interpretações fossem verdadeiras. Mas há dúvidas. O encurtamento dos prazos (o prazo médio da dívida pública americana detida pelo público caiu de 57 para 46 meses), a queda do volume das aplicações dos estrangeiros nos ativos americanos (em geral, não só Treasuries) e o desejo do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, de recomprar sua dívida depõem contra essas hipóteses benignas. Além disso, a melhor percepção sobre a recuperação da economia americana não deveria estar associada a uma depreciação da moeda. Em contraste, uma diminuição do apetite dos investidores por títulos americanos devida ao risco fiscal (downgrade) e de inflação, ou devida à perda de valor do dólar (investidor recebe menos na sua moeda de origem), é um sintoma mais preocupante. Uma subida prematura dos juros longos por esses motivos poderia pôr em risco a frágil recuperação da economia americana (e, via queda das importações, da recuperação da economia mundial). E qual seria o impacto no Brasil? Uma lenta realocação dos investidores para fora dos ativos em dólar, se feita de forma gradual e ordenada, poderia levar à apreciação do real e a quedas dos juros no Brasil. Afinal, haveria mais demanda por nossos ativos em detrimento dos ativos em dólar, e nos Estados Unidos. O benefício de uma maior disposição internacional para financiar o Brasil poderia contribuir para sustentar a economia brasileira, apesar das dificuldades da economia americana. Já uma eventual (e ainda pouco provável) corrida contra os ativos americanos que levasse à desorganização do sistema financeiro (afinal, o dólar é a moeda de referência do mundo e os Estados Unidos, o centro financeiro) poderia elevar o risco no mundo e prejudicar todos. É um risco para ficar no radar de todos. Em geral, tendo a associar desenvolvimentos locais com os internacionais. A realocação de recursos que está prejudicando o mercado de títulos americanos pode estar na origem do recente influxo de capital para o Brasil - e a consequente apreciação do real. Melhor para nós. Mas, se passar do ponto por lá, piora por aqui também. Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú-Unibanco