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Segredo de Estado e corrupção

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Por Carlos Alberto Di Franco
3 min de leitura

O presidente do Senado, José Sarney, que defende sigilo eterno para documentos secretos, sugeriu que sua divulgação pode causar atritos com nossos vizinhos. "Não podemos fazer o WikiLeaks da História do Brasil", sublinhou o senador, certamente preocupado com as graves consequências da divulgação dos segredos da Guerra do Paraguai ou das negociações do barão do Rio Branco que fixaram as nossas fronteiras.Sob argumentos nada claros, e alguns francamente cômicos, o governo federal deu marcha à ré em seu anunciado projeto de transparência. Como salientou editorial deste jornal, a mesma presidente Dilma Rousseff que escolheu a data de 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, para sancionar a lei que acabaria com o sigilo eterno de documentos oficiais brasileiros - e por isso instou o Senado a aprovar com rapidez a matéria - simplesmente aceitou que se retirasse o caráter de urgência do projeto.Pela legislação atual, os documentos de caráter "ultrassecreto" permanecem por 30 anos inacessíveis ao público, e esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A Câmara dos Deputados decidiu, no ano passado, em acordo com o governo, diminuir para 25 anos o tempo do sigilo, autorizando a sua renovação uma vez apenas: total de 50 anos. Mudou para melhor. Estaria de bom tamanho.O projeto da Câmara foi encaminhado ao Senado. Dilma comprometera-se a apoiar a sua votação tal como o texto se encontrava. Rendendo-se ao titular do Senado, José Sarney, e ao ex-presidente Fernando Collor, que dirige a Comissão de Relações Exteriores da Casa, Dilma concordou com a interdição perpétua dos documentos ultrassecretos. Como bem salientou Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, chegamos a um ponto em que uma legislação moderna, que poderia ser conhecida como a "lei da transparência", acabará chamada de "lei do sigilo eterno".Mas o mesmo governo que defende a perpetuação do silêncio tenta fechar um acordo para que o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade seja aprovado no Senado e na Câmara o mais rápido possível. A ideia é que, logo que os termos do acordo com governo e oposição sejam fechados, o projeto - que estabelece uma comissão para investigar e fazer a narrativa das violações dos direitos humanos durante a ditadura militar - seja aprovado nas duas Casas. O governo, que, aparentemente, quer uma narrativa transparente de um período da nossa História deseja manter a maior parte dela nos porões do sigilo perpétuo. Afinal, a que verdade a presidente da República aspira? Como conjugar a Comissão da Verdade com o sigilo eterno? A quem interessa o silêncio? A resposta, caro leitor, é simples e está articulada com outra iniciativa que, sorrateiramente, transita no Congresso Nacional: a Lei da Mordaça.De autoria do deputado Sandro Mabel (PR-GO), o texto foi modificado pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça, Maurício Quintella Lessa (PR-AL). A proposta original classificava como crime a divulgação e o vazamento de qualquer tipo de informação que fosse objeto de investigação oficial. Maurício Quintella restringiu o crime às apurações criminais, mas deixou claro que a nova tipificação será aplicada não só ao servidor que fizer vazar a informação, mas também a quem a divulgar na imprensa. Quer dizer, denunciar corrupção pode dar cadeia.A cereja que faltava ao bolo da ilegalidade e da falta de ética chegou antes do que se imaginava. A Medida Provisória 527, aprovada na Câmara, prevê a manutenção em segredo de orçamentos prévios para as obras da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. O procurador-geral de República, Roberto Gurgel, afirmou que é "escandalosamente absurda" a decisão da Câmara. Estamos, pois, na antessala de um provável megaescândalo patrocinado pelo sigilo protetor da impunidade.A sociedade brasileira assiste, atônita, ao nascimento de um nefasto contubérnio. Deram-se as mãos a corrupção e o autoritarismo. Em recente entrevista à revista Veja, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, deixou clara a sua preocupação com as barreiras criadas pela legislação brasileira com o objetivo, segundo ele, de tornar inviável a punição de políticos corruptos. O foro privilegiado, como o nome já diz, acentua bem essa situação. É uma "distinção cruel que não deveria existir".Lembrou Joaquim Barbosa, como exemplo emblemático, que Bill Clinton foi inquirido pelo Grande Júri: "O que é um Gran Jury nos Estados Unidos? Nada mais que um órgão de primeira instância, composto de pessoas do povo. Era o presidente dos Estados Unidos comparecendo perante esse júri, falando sob juramento, sem privilégio algum. O homem mais poderoso do planeta submetendo-se às mesmas leis que punem o cidadão comum. O foro privilegiado é a racionalização da impunidade". E eu acrescentaria: o sigilo eterno e a censura, aberta ou disfarçada, são a consagração da bandidagem.O secretismo de Estado é um perigo para a democracia. O princípio da presunção da inocência deve ser garantido, mas não à custa da falta de transparência. O princípio constitucional da publicidade, pelo qual qualquer cidadão tem direito a obter das autoridades públicas informações de interesse pessoal e geral, está sob fogo cruzado.O combate à corrupção reclama uma imprensa livre e sem amarras. Não se pode admitir que o governo oculte informações de interesse público. A Lei da Mordaça é uma bofetada na democracia. Por outro lado, o sigilo eterno é uma forma perversa de supressão da História. Se o governo insistir no anacronismo, autoritário e obscurantista, acabará nascendo o WikiLeaks da cidadania.DOUTOR EM COMUNICAÇÃO, É PROFESSOR DE ÉTICA E DIRETOR DO MASTER EM JORNALISMO E-MAIL: DIFRANCO@IICS.ORG.BR