
10 de janeiro de 2013 | 02h06
Se o leitor habitual desta página A2 do Estadão ainda não viu, deveria ver. O debate retratado na tela é do mais alto interesse para quem procura acompanhar os rumos políticos da democracia. O que é que a empurra numa direção ou noutra? Em que cadinho são sintetizadas as decisões coletivas? Qual o papel que a publicidade - ou, em termos um pouco mais amplos, o chamado marketing político - desempenha nesse jogo?
Para Karl Marx e Friedrich Engels, a luta de classes era o motor da História (grafada com H maiúsculo). Segundo a gente depreende do enredo brilhante de No, a coisa não é bem assim: o motor da história é uma mensagem bonita, vibrante de euforia, que "venda" bem. É nisso que o povo quer embarcar, é isso que o povo quer "comprar". Moral da história (com h minúsculo), o motor da História, prezados camaradas, é a publicidade. Por essas e outras, o filme dá o que pensar - e dá margem a indagações um tanto perturbadoras.
Voltemos ao ponto de partida. No, como bom filme que é, trata de contar direito uma boa história; não tem nada de aula de ciência política, não é seminário de sociologia, não se perde em interpretações acadêmicas sobre os fatos que encadeia com esmero. O cineasta Pablo Larraín reconstitui com verossimilhança impressionante, num andamento de documentário, um fato histórico real: a campanha pelo "Não" (daí o título) realizada pelas oposições chilenas no plebiscito de 1988, que decretou o fim da ditadura de Pinochet. O filme começa deixando claro que o que ocorreu ali foi um episódio, no mínimo, improvável. Internacionalmente pressionado a dar uma roupagem menos truculenta à sua tirania, o general Augusto Pinochet viu-se constrangido a convocar o plebiscito para consultar os cidadãos sobre se eles o queriam (ou não) no poder. No início da campanha o ditador posava de franco favorito, pois detinha o controle férreo sobre os meios de comunicação. Com a autoconfiança típica do leão de chácara que virou dono da boate, Pinochet nem considerava a hipótese de derrota. Nisso os integrantes das oposições concordavam com o carrasco: para quase todos eles, a hipótese de vitória era impensável. Acontece que, para dar uma aparência mais democrática ao plebiscito, o governo precisou conceder às oposições um horário de propaganda na TV. Foi aí que o impensável se pôs em campo. O horário era desfavorável (os filmetes das oposições iam ao ar bem tarde da noite), o ambiente era arredio, mas, mesmo assim, a maré começou a virar.
Por quê?
Porque os comunistas, os socialistas, os perseguidos, os liberais de oposição, o multicolorido balaio de gatos das oposições, foram buscar um publicitário de sucesso para dirigir sua campanha. Esse homem de mercado, por sua vez, recrutou outros bruxos do consumo e da linguagem comercial da TV. Nesse ponto, No fotografa com absoluta nitidez o momento histórico (cuja cronologia varia de país para país) em que o publicitário desbanca o ideólogo no comando da luta política. Em lugar das cenas de espancamentos e de repressão explícita, em vez do desfile das mães chorosas dos milhares de desaparecidos, os publicitários do "No" contrariaram os velhos ideólogos e deram preferência a musiquinhas, piqueniques, trocadilhos, anedotas, o que detonou a ira dos esquerdistas mais conservadores. Alguns deles se retiraram ruidosamente do comitê de campanha, que acusaram de ter-se vendido aos publicitários que degradavam as mais nobres causas humanitárias a apelos vulgares de comercial de sabonete.
Ou de micro-ondas. Não importa. No final, o "No" sagrou-se vencedor, embora num placar apertado: considerados os votos válidos, o "No" conquistou 56% do eleitorado, enquanto o "Si" obteve a adesão de 44% (e nisso está o dado mais intrigante: para 44% dos chilenos, o país sob ditadura ia muito bem, obrigado). A vitória dos publicitários, contudo, não revogou o fundamento daqueles que se opuseram à transformação da campanha do "No" numa campanha publicitária como qualquer outra. Esse debate permanece e, por qualquer caminho que se queira abordá-lo, ele nos conduz ao centro da viabilidade (ou não) do projeto democrático nos nossos dias. Será sólida e sustentável uma democracia em que os argumentos que não cabem em 15 segundos de televisão acabam descartados da agenda política? Que lugar resta para a razão numa comunicação política regida cada vez mais pela lógica do desejo, ou, pior ainda, pelo desejo de consumo?
Alain Touraine viu esse impasse há cerca de 20 anos: "As sociedades complexas e de mudanças rápidas pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para serem cada vez mais sociedades da expressão. (...). Cada vez menos tratamos com comunicadores e cada vez mais com atores".
Eis aí uma equação ainda insolúvel. A publicidade infantiliza o seu público, tutelando-o como a um semi-inimputável; não tem parte com a busca radical da verdade, mas com a sedução em prol da venda de produtos, serviços ou ideias. Dirão que a política sempre foi isso, um comércio de ideias, mas, ainda assim, é o caso de perguntar: será essa a emancipação com a qual sonharam os liberais revolucionários do século 18? Ótimo que o "No" tenha vencido no Chile em 1988, mas será que a transformação das causas políticas em mercadorias desejáveis é a nossa mais alta expressão de liberdade?
Encontrou algum erro? Entre em contato