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Opinião|Sim, nós podemos!

Atualização:

O que muda de saída é que o objetivo da ação do Estado deixa de ser manter o PT sozinho na arena política do presente e do futuro do Brasil, ao qual tudo o mais esteve subordinado nos últimos 13 anos. Mudanças de rumo no interesse da Nação voltam a ser possíveis; o projeto de uma democracia brasileira retoma o seu lugar no horizonte da Nação.

Desse ponto em diante, massas imensas de entulho precisam ser removidas para que a marcha possa prosseguir. Nu como esteja, o Brasil do “queromeu” (o com e o sem discurso “ideológico”) está longe de se render. Michel Temer sabe onde mora o perigo e tem feito concessões a cada passo para que não lhe cassem antes da primeira dose a licença para ministrar remédios à economia, que estrebucha nas suas mãos.

O que põe dentes na acintosa desfaçatez dessa máfia é a figura do “direito adquirido” na formulação pervertida de exceção ao direito geral, que nas democracia só vale se valer para todos, que tem no Brasil. Ela torna a injustiça exigível nos tribunais, perpétuos os privilégios e, ao autorizar o Estado a outorgá-los à vontade, galopante a corrupção. Mais que o custo, é a subversão institucionalizada que esse instrumento instala que nos mata.

Os miseráveis do Brasil, que pagam Imposto de Renda a partir de pouco mais de dois salários mínimos, sustentam todos os “auxílios”, gratificações, adicionais, abonos, recessos e “vales”-tudo e mais alguma coisa livres de impostos, mas incorporados às aposentadorias precocíssimas das “excelências” e dos demais empregados do Estado, que, descontados todos esses extras, já paga salários duas vezes maiores que os do Brasil real. A medida do quanto valem esses penduricalhos todos é dada pelas aposentadorias do setor público, 33 vezes maiores, em média, que as dos “manés”. Bancam também os partidos sem eleitores (35 na ativa, mais 29 no forno), os sindicatos sem trabalhadores em que eles se inspiraram (115 mil, mais 280 novos por ano), os “advogados” (trabalhistas) que não advogam (exploram um sistema institucionalizado de achaque), os empreendedores sem risco (R$ 323 bi ou 13 anos de Bolsa Família, por enquanto), os “movimentos sociais” sem cidadãos, as ONGs sem voluntários (o PT fez convênios com mais de 100 mil), os artistas sem público e toda a vasta multidão que chora menos porque grita mais...

Os tais funcionários “comissionados” enfiados na máquina pública e nas 140 estatais expressamente para mamar não são só os 23 mil da União. Nos Estados há mais 115 mil. Nos municípios, meio milhão. 15.500 são criaturas recentes do Congresso; mais de 12 mil da Câmara dos Deputados, onde são quatro vezes mais numerosos que os concursados. É deles o grosso dos “direitos adquiridos” mais aberrantes da teratológica coleção brasileira. São os tais garçons, motoristas, ascensoristas e amigos diletos e parentes “assessores” que ganham mais, muito mais, que médicos e professores com mestrado e doutorado concursados e efetivamente a serviço da população.

Nesse mundinho particular, só uma coisa é sagrada: entrou, não sai mais. Ponha-se o câncer das favelas na fila de espera e os documentos históricos da Biblioteca Nacional sob a chuva e tudo bem. “Normal”. Até idade mínima para aposentadoria se admite discutir, de tão evidentemente razoável que é, sobretudo nesta hora de tanta pobreza sendo transformada em miséria. Mas ouse tocar nos “direitos adquiridos” mais graficamente obscenos e injustificáveis e as trombetas de Jericó atroarão os ares do Oiapoque ao Chuí, da Côte d’Azur ao Baixo Leblon.

Ao fim de um longo e tenebroso inverno temos um presidente da República permeável à realidade e capaz de conversar e um “dream team” de profissionais do mundo real nos postos-chave da Fazenda pública. Só que continua sendo contra a lei consertar a economia do Brasil e inconstitucional manter a equação fiscal no equilíbrio necessário para garantir o valor do resultado do trabalho dos brasileiros que vivem do que produzem.

Como obrigar congressistas fisiológicos articulados por um governo de transição que nasce pendurado no ar, num país onde todo mundo – a começar pelo todo-poderoso Judiciário, que desfruta a maior de todas – tem pelo menos uma tetinha para chamar de sua e acha isso muito justo, é o desafio que se apresenta.

Parece impossível, mas não é. A necessidade é a maior força da natureza. Os números que decretam o fim desse sistema medieval de opressão falam por si. Se exibidos pelo governo com um mínimo de competência didática, mudam completamente o jogo de forças. O Brasil que mama está morto e não sabe. Mas logo vai ficar claro que só sobreviverá quem sair da frente para passar a ajudar a empurrar. Vem dor demais por aí para que isso pare numa simples manobra de ressuscitação.

A imprensa é o fator decisivo para uma “virada” mais ampla. Se assumir a cruzada que há tanto tempo deve aos miseráveis do Brasil para esmiuçar cada parcela dessa conta sob a baliza da igualdade perante a lei, liberta já o País. Modo de vida contra modo de vida, número por número, o escândalo desses privilégios posto ao lado da miséria que eles custam fará o milagre.

Como na Campanha Abolicionista, que nos livrou daquela outra escravidão, vem das ruas, e não dos palácios, o “basta” que, desde 2013, empurra o Brasil para fora da Idade Média. Quem pôde o mais pode o menos. Lancetado o tumor da privilegiatura “adquirida”, o caminho para tomarmos definitivamente o direito à última palavra sobre as decisões que afetam a nossa vida das mãos dessas mafiazinhas subornáveis estará aberto.

Parlamentarismo? Nova eleição? Chega de “mudar para que tudo fique igual”. As ferramentas consagradas do voto distrital, do recall e do referendo, que tornam os políticos totalmente dependentes de seus eleitores, como devem ser, estão aí para quem tiver a coragem de exigi-las. Com elas nas mãos, o resto das reformas a gente mesmo vai fazendo, na velocidade e na medida que a necessidade encomendar.

*Fernão Lara Mesquita é jornalista e escreve em www.vespeiro.com

Opinião por Fernão Lara Mesquita