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Simbiose com os dias contados?

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Por Sérgio Fausto
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"Fidel es un padre para nuestro pueblo y Cuba un ejemplo para nuestra revolución." A frase é de Hugo Chávez. Foi pronunciada em 2005, num discurso em que o presidente venezuelano proclamava ao mundo que Cuba e Venezuela, juntas, abririam um novo caminho. Lembrei-me da frase dias atrás, ao ler nos jornais que Chávez havia expropriado várias empresas fornecedoras de serviços do setor petroleiro. Disse aos trabalhadores que os estava livrando do jugo do capitalismo. Na verdade, com a medida atacou um problema imediato: as dificuldades enfrentadas pela PDVSA para honrar dívidas acumuladas com aquelas empresas. Seja como for, trata-se de mais uma rodada no já avançado processo de estatização da economia venezuelana, acompanhado por crescente centralização do poder e cerceamento das liberdades políticas naquele país. A História não se repete e a Venezuela de amanhã não será a Cuba de ontem. Mas a simbiose entre os dois países é hoje uma realidade. Quais a natureza e o futuro dessa "aliança carnal" entre os dois regimes? E por que isso importa? Maior ícone latino-americano da luta nacional-revolucionária contra o "Império", Cuba transfere à Venezuela seu desgastado, mas ainda vigente, capital simbólico. Não é por acaso que as Forças Armadas da República Bolivariana da Venezuela adotaram o lema "patria, socialismo o muerte", reminiscente de frase semelhante cunhada por Fidel Castro nos idos de 1960, em meio a uma escalada de atos de sabotagem contra o regime revolucionário, perpetrados com apoio dos EUA. Ao capturar o imaginário que ainda gravita em torno de Cuba, Chávez atinge vários objetivos. Dentro da Venezuela, estigmatiza os adversários políticos como "inimigos da pátria" a mando do "Império". Busca assim dar legitimidade a políticas repressivas e estratégias de segurança nacional, que incluem a formação de "milícias populares", pretensamente justificáveis ante o espectro de uma suposta invasão americana e efetivamente úteis como instrumento de amedrontamento das oposições. Cuba serve-lhe ainda para angariar simpatias no exterior, principalmente na América Latina, onde o "mito cubano" ainda tem apelo considerável. A Venezuela, por sua vez, supre o frágil organismo econômico de Cuba com bens essenciais. Calcula-se que cerca de 70% do seu abastecimento de petróleo dependa do fornecimento de barris venezuelanos a preços subsidiados. O petróleo responde por parte significativa de um intercâmbio comercial que passou de menos de US$ 400 milhões para mais de US$ 7 bilhões entre 1998 e 2007. É também significativo o financiamento venezuelano à indústria de insumos básicos cubanos e a projetos de infraestrutura naquele país. Em troca, Cuba manda à Venezuela um contingente de profissionais de saúde, educação e esportes, que alcançava 39 mil pessoas em 2007, ou 75% do total de cubanos em missões de cooperação internacional. Menos transparente é a cooperação militar entre os dois países. Os sinais mais visíveis dessa cooperação são as visitas recíprocas de oficiais de alta patente. Há também as declarações de Chávez sobre a necessidade de estabelecer um sistema de defesa comum, incluindo serviços de inteligência e contrainteligência, para a Alternativa Bolivariana para las Américas (Alba), bloco fundado em 2004 por Venezuela e Cuba, com posterior adesão da Bolívia e da Nicarágua. A estratégia de projeção da Venezuela não se resume a Cuba nem se limita à América Latina, mas tem na ilha um pilar importante, pelas razões já apontadas, às quais cabe acrescentar o envio de assessores militares, alguns diretamente ligados ao presidente venezuelano. Ao mesmo quadro se deve acrescentar ainda o fato de a Venezuela ter feito acordos de cooperação militar com a Rússia, para importação de equipamentos e construção de fábrica de armamentos, além de cogitar de parcerias na geração de energia nuclear não apenas com a Rússia, mas também com o Irã. Factíveis ou não, tais projetos atraem tensões globais estranhas e prejudiciais à América Latina. Tampouco é favorável à causa da paz e da prosperidade na região o fato de Cuba e Venezuela, em simbiose, servirem de polo de referência para partidos, movimentos sociais e ideólogos que enxergam na democracia liberal e na economia de mercado a fonte de todos os males do mundo contemporâneo e nos EUA, a encarnação do demônio. As chances de quebrar essa simbiose aumentaram com a eleição de Barack Obama (e com a queda abrupta do preço do petróleo, que barateia as importações cubanas e tira fôlego financeiro da Venezuela). Os primeiros passos dados pelo novo governo americano na direção do levantamento do embargo a Cuba são muito positivos, embora insuficientes. Obama fez o que estava a seu alcance sem alterar a lei que regula o embargo. A chamada Lei Helms-Burton compreende mais de 30 seções e inclui numerosas e detalhadas proibições ao intercâmbio comercial, financeiro e humanitário com a ilha, aplicáveis não apenas a cidadãos e empresas americanas, mas, em tese, a cidadãos e empresas de outros países com operações nos EUA. Só admite o levantamento parcial do embargo se caracterizada a existência de um governo de transição em Cuba, caracterização para a qual estabelece dezenas de critérios. Dezenas de critérios são também estabelecidos para caracterizar a existência de um governo democrático em Cuba, única hipótese admitida para o levantamento total do embargo. Uma verdadeira camisa de 11 varas. Não será fácil para Obama rompê-la, pela dificuldade de obter, para tanto, maioria no Congresso. Chávez conta com isso para manter Cuba em sua órbita. E a esquerda não democrática, em Cuba e fora dela, para manter acesa a chama bruxuleante da luta nacional-revolucionária contra o "Império". Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP E-mail: sfausto40@hotmail.com