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Só uma gincana diplomática

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Por Redação
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Sobraram palavras e faltou conteúdo econômico e político nos comunicados e acordos firmados em Brasília, numa gincana diplomática, pelos chefes de governo do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) e do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul). Foi preciso comprimir os dois eventos na quinta-feira, porque o presidente chinês, Hu Jintao, teve de antecipar a volta a Pequim por causa do terremoto em seu país. O presidente Lula, como se previa, foi quem mais demonstrou entusiasmo em relação aos dois encontros. A consequência prática mais importante da conferência do Ibas foi um acordo para o lançamento de dois satélites de estudo climático. A declaração dos governantes do Bric não foi além de generalidades sobre o papel do Grupo dos 20 (G-20) e a ordem global em transformação. A papelada mais extensa foi dedicada a um Plano de Ação Conjunta de brasileiros e chineses para o período 2010-2014. O plano inclui, entre outras ideias criativas, a "promoção do intercâmbio e da cooperação entre os partidos das duas partes". O intercâmbio poderá ser instrutivo, mas desequilibrado, já que na China só existe um partido. O comunicado do Bric contém uma convocação ao G-20 para formular uma estratégia "coerente" para o pós-crise, reafirma a solidariedade dos quatro governos ao Haiti, defende o "diálogo entre civilizações, culturas, religiões e povos" e anuncia o compromisso - cobrado igualmente de todos os Estados - de "resistir a todas as formas de protecionismo comercial e combater restrições disfarçadas ao comércio". Nenhum dos quatro países deixou de recorrer a barreiras e a outras formas de intervenção, desde o agravamento da crise, em 2008, e um deles é acusado por meio mundo de competir deslealmente, mantendo sua moeda desvalorizada (o yuan), e de prática habitual de dumping. Câmbio depreciado e práticas pouco transparentes de comércio têm sido apontados como fatores importantes para a conquista chinesa de mercados na América Latina. Parte desse avanço foi realizada à custa da indústria brasileira. Mas, de acordo com o Plano de Ação Conjunta, "as duas partes verão positivamente o engajamento de cada uma na cooperação com sua própria região". Além disso, "apoiarão as trocas e cooperações entre a Ásia e a América Latina e o Caribe". Quem lê esse texto e desconhece os fatos pode até pensar num quadro de relações equilibradas e de competição equitativa. Quem sabe das coisas é tentado a repetir Nelson Rodrigues: há quem goste de apanhar. Mas Nelson Rodrigues, por machismo, dizia isso das mulheres, não dos governos.Nas áreas de investimento e de comércio, a maior parte do plano se refere a ações interessantes principalmente para a China. Quando se menciona a cooperação nas áreas de energia, mineração, desenvolvimento, financiamento, serviços de engenharia e equipamento, os interesses facilmente identificáveis são os chineses. Se a Petrobrás descobrir e explorar petróleo ou gás na China, o produto será destinado ao uso local. Se companhias chinesas participarem da mineração no Brasil, será para abastecer seu país. Não há nenhum crime nisso. Mas falta saber como isso afetará, por exemplo, a formação de preços no comércio bilateral. A mesma dúvida é justificável quando se fala sobre possíveis investimentos chineses na produção agrícola no Brasil. Para os chineses, Brasil e África não diferem muito nesse aspecto. O plano abre caminho para a liberação das exportações de carne para a China, mas isso ainda vai depender de procedimentos técnicos e burocráticos sem prazo definido. É um passo positivo, mas muito modesto, quando se considera o circo armado pelo governo brasileiro para a visita do presidente chinês. Segundo o documento, os Ministérios de Relações Exteriores dos dois países fortalecerão o diálogo para "intensificar a confiança política mútua e ampliar a visão estratégica comum". Pelo menos essa passagem é quase realista: por enquanto, a estratégia comum existe nos discursos do presidente Lula. Na estratégia chinesa de médio e de longo prazos, o Brasil é sobretudo um fornecedor de matérias-primas e bens intermediários e, é claro, um grande e promissor mercado. O resto são devaneios de ficção diplomática que incluem até diálogo sobre direitos humanos.