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Opinião|Sobre segurança pública e segurança nacional (1)

A ilegalidade do tráfico está eivada de tabus, ideologias e interesses, nem todos honestos

Atualização:

Diante da matança em presídios, anunciam-se providências governamentais compondo um bom plano, as quais amenizarão o impacto da barbárie sobre a sensibilidade pública. Mas elas tendem a ser sobrepujadas pelo crescimento inercial do crime violento, germinado na disputa do mercado ilegal de drogas.

Não se soluciona o problema porque se incorre no engano de não o analisar sistemicamente, com as causas reais, e, em consequência, não aplicar as ações de longo prazo necessárias. Como há que responder à correta pressão da mídia e interferir o quanto antes no processo de formação da opinião pública, inclusive internacional, recorre-se aos estalos de soluções assistêmicas que logo se exaurem e, finalmente, agravam o problema.

O plano foca os mesmos pontos principais das declarações de intenções anteriores de governos federais e estaduais:

• Redução do número de homicídios dolosos,

• combate ao tráfico de drogas e armas,

• e modernização e construção de presídios.

Onde o enfrentamento estrutural e permanente da gênese real da violência? Onde o destaque para a prevenção primária do uso de drogas? Onde os tabus a serem derrubados?

Um destes é o tráfico ilegal, causador maior da violência. Voltarei a ele adiante, mas antecipo três pontos: 1) enquanto for ilegal, será cada vez mais incontrolável; 2) enquanto o consumo aumentar, o tráfico será cada vez mais rentável; e 3) a descriminalização tem de ser condicionada ao êxito de esforço nacional para educação da juventude, que a capacite a discernir entre usar drogas ou não. A métrica será o ritmo e o nível de redução do consumo.

Em 19/6/1998 foi instalada a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), eixo governamental da coordenação da prevenção primária do uso de drogas, cuja criação o presidente da República determinara à Casa Militar – depois, Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Na ocasião, respondi a uma jornalista que me indagara se era a favor da descriminalização das drogas: “Sim. Mas somente após Estado, famílias, religiões e escolas cumprirem o dever ético de educar crianças e jovens sobre os malefícios que as drogas causam à saúde orgânica e mental e ao comportamento social”. Estimei o prazo máximo de uma geração, ou 20 a 25 anos.

A despeito da dedicação e do empenho dos secretários (em especial Paulo Roberto Uchôa, que teve apoio da comunidade terapêutica e fez importantes articulações intragovernamentais, com a sociedade e com homólogos estrangeiros), não se obteve a indispensável mobilização nacional efetiva. A Senad, que ia muito bem, foi esvaziada após a saída desse secretário, em 2011, e se perdeu o conceito de sua criação e posicionamento supraministerial, na Presidência da República. Os fatos mostram que o dever coletivo não foi cumprido. O consumo aumentou e inflou a rentabilidade do mercado. As quadrilhas estruturaram-se nacional e internacionalmente para disputar o mercado, que, por ser ilegal, pressupõe luta armada, aética e amoral.

O rolo compressor do tráfico tem criado consequências maléficas muito além da saúde e do comportamento dos usuários e atinge a Nação e o Estado por via da afronta ao poder, autoridade e soberania populares delegados aos chefes do Poder Executivo nas três esferas da administração pública.

Em fins dos anos 90, em face do crescimento da criminalidade e por ordem do presidente, o GSI começou a elaborar o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública. Tínhamos convicção de que se caminhava para romper os limites impostos pela interpretação errada do artigo 144 da Constituição federal, que via segurança pública sob responsabilidade única dos Estados federados. Visávamos à entrada direta da União nos esforços de solução.

Consultaram-se muitas pessoas e organizações e produziu-se um plano geral que contemplava, sim, a repressão. Mas tinha viés preeminentemente preventivo no seu Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Enfrentamento dos Indutores de Violência (Piaps), com ambientação municipalista. Ele viria aliar-se à estratégia de prevenção do uso de drogas da Senad.

Existiam resistências à quebra do falso paradigma do artigo 144, em setores do âmbito federal e nos Estados. Havia que aguardar a oportunidade para o argumento final. Infelizmente, ela surgiu com a comoção nacional pelo sequestro do ônibus 174, em 12/6/2000, no Rio de Janeiro, no qual houve (pasmem!) duas mortes – a jovem refém e o bandido.

Oito dias depois, o plano nacional era lançado pelo presidente. O Piaps, que o diferia de qualquer outra estratégia, foi implantado nas quatro regiões metropolitanas com maiores índices de violência: São Paulo, Rio, Vitória e Recife. Integrava programas com vocação social de 13 ministérios, dos Estados, municípios, de ONGs e, sobretudo, envolvia lideranças comunitárias locais. Em 2002 foi complementado pelo Sistema Nacional de Inteligência de Segurança Pública.

A métrica da Fundação Instituto de Administração da USP mostrava que o Piaps avançava. Era provável que atingisse as metas de contenção e redução do crime se a visão estratégica de Estado – logo, de longo prazo – permeasse os governos seguintes, o que não ocorreu. Essa visão tem de arrostar a pujança crescente e hoje próxima de incontível do mercado ilegal, e o papel preponderante que o tráfico antes tendia a assumir e hoje demonstra ter assumido no ciclo causal e realimentador do empoderamento das quadrilhas. Os estrategistas governamentais devem ter em mente que a ilegalidade do tráfico está eivada de tabus, ideologias e interesses, nem todos honestos, que precisam ser expostos e permanentemente questionados.

Na segunda parte deste artigo relacionarei segurança pública e segurança nacional.

*General de exército reformado, foi ministro-chefe do gabinete de segurança institucional da Presidência da República