Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Social-democracia à brasileira

Exclusivo para assinantes
Por Gaudêncio Torquato
3 min de leitura

De repente, a bola chegou quadrada aos pés de Eduardo Campos: rever ou não rever o manifesto do PSB, datado de 1947, cujo item 7 prega que o objetivo do partido no terreno econômico "é a transformação da estrutura da sociedade, incluída na gradual e progressiva socialização dos meios de produção, que procurará realizar na medida em que as condições do País a exigirem". O pré-candidato à Presidência da República se vê no meio de uma enroscada. De um lado, empresários do campo privado temerosos de que a pelota seja chutada para os braços de Karl Marx; de outro, correligionários duros, que não admitem tesoura para cortar documento histórico. A par do simbolismo implícito no texto que ainda prega a "manutenção da propriedade privada nos limites da possibilidade de sua utilização pessoal, sem prejuízo do interesse coletivo", o documento suscita a indagação: de que social-democracia o Brasil necessita e que peculiaridades devem ser examinadas nas propostas dos candidatos à Presidência da República? Essa é a questão em jogo, ainda mais quando o tema da concentração de renda e igualdade social ganha o foro mundial, a partir do livro do francês Thomas Piketty, Capital no século XXI. Ao traçar o histórico da concentração de renda nos últimos três séculos, ele mostra que os ricos ficam cada vez mais ricos e a desigualdade fica cada vez pior.O fato é que nossa social-democracia carece de aperfeiçoamentos. A título de lembrança, tal modelagem começa a tomar corpo a partir da ofensiva liberal conservadora que impacta o País nos anos 70, ganha corpo na onda de organização dos movimentos sociais impulsionados pela Constituição de 1988 e resulta na ampliação dos direitos coletivos, base do Estado do bem-estar. Não se trata, como alguns podem imaginar, de opor as bandeiras do socialismo clássico às do liberalismo ortodoxo. Trata-se de alinhar o sistema ao espírito do nosso tempo. Ganhando consistência progressiva entre 1919 e 1939, na Europa, sob a égide das identidades regionais e revisões constantes do escopo socialista, a social-democracia ganhou nuances aqui e ali, sem romper os pressupostos econômicos, políticos e sociais do liberalismo. Elege o Estado como regulador da economia, coisa necessária para corrigir desequilíbrios causadores de crises, aliás, na esteira das lições de John M. Keynes.O modo de produção capitalista, por sua vez, atravessou um longo corredor de mudanças. As organizações foram instadas a ampliar a pletora de direitos dos trabalhadores. A configuração do mundo do trabalho adquiriu novos contornos com a multiplicação de micro e pequenos negócios, abrindo aos trabalhadores acesso ao território dos empreendimentos. Nesse ambiente, a social-democracia incorporou transformações nas esferas organizativas, políticas, econômicas e sociais. Ao perceber a impossibilidade de um só partido juntar mais de 50% dos votos de um país e chegar, sozinho, aos píncaros do poder, passou a agregar alianças. E a coabitar. Na França, pôde-se ver um presidente socialista (François Mitterrand) convivendo com um primeiro-ministro da direita conservadora (Jacques Chirac); ou um presidente direitista (Chirac) ao lado de um primeiro-ministro socialista (Lionel Jospin). A clássica luta de classes abriu vez para a conciliação entre grupos e classes; a esfera dos trabalhadores estendeu seus domínios, agora integrando as classes médias (com profissionais liberais), e não apenas os peões do chão de fábrica. Os partidos de massas substituíram os classistas.Dito isso, cheguemos ao panorama brasileiro. Que caráter e programas devem ancorar nosso sistema social-democrata? O pressuposto inviolável, intransferível, imutável é o compromisso com o Estado do bem-estar. Em outros termos, o sistema deve desenvolver uma economia viável, ajustada aos parâmetros do território, capaz de beneficiar todas as parcelas da população e endossada por partidos que se juntem em aliança para implantar programas consensuados. Tal ideário não pode desequilibrar o orçamento público ou ancorar políticas populistas. Esse é o ponto de atenção. Urge enxugar a máquina administrativa usando critérios racionais e dar ao Estado o tamanho adequado para cumprir suas tarefas. Fernando Henrique tentou diminuir a extensão da máquina. Foi acusado de privatista. O ciclo Lula voltou a inchar a máquina com milhares de contratações. Mas não desconstruiu os pressupostos liberais. Na era Dilma, o Estado é considerado "mais intervencionista". Afinal, que instrumentos o Estado deve dispor para preservar seu papel de regulador da economia, promover o bem-estar e orientar a iniciativa privada no caminho do bem comum? Ampliar ou não as Parcerias Público-Privadas (PPPs) a concessão de serviços públicos e impor limites à privatização de bens públicos? O que cabe em nossa social-democracia? Com a palavra, os postulantes à Presidência da República.É hora de atribuir a cada qual o que lhe pertence. É inegável que o braço assistencialista dos anos PT contribuiu para acelerar a dinâmica social. Da mesma forma, as estacas do Estado atual foram fincadas na era tucana do Plano Real. Outro ajuste seria nos vãos do nosso presidencialismo. A Tríade do Poder parece torta. O sistema presidencialista, com extrema concentração de força, precisa diminuir seu ímpeto legislativo. Tudo passa pela tinta da caneta do mandatário-mor, que mora na fortaleza que distribui verbas, cargos, empregos e favores. Todo esforço se fará necessário para atenuar aquilo que José Murilo de Carvalho chama de "estadania", contraponto à cidadania. A organicidade social, a constelação de entidades que se transformam em novos polos de poder, as manifestações de rua abrem um amanhã para a democracia participativa, cujo papel é o de fazer pressão sobre a democracia representativa. Nota de pé de página: não há por que temer o manifesto de 1947 do PSB. O mundo girou, e muito, desde os tensos anos da guerra fria.*Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gautorquato