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Opinião|Solidariedade e paz

Atualização:

O início de um novo ano renova os desejos e esperanças de paz para o mundo. O ano que passou foi marcado por violências e mostrou mais uma vez como a paz é um bem delicado e jamais assegurado de uma vez para sempre.

Todos os anos, no dia 1.º de janeiro, a Igreja Católica comemora o Dia Mundial da Paz. Em sua mensagem para a ocasião, o papa Francisco convidou a superar a indiferença e a construir a paz mediante a solidariedade ativa. A paz não é fruto de forças mágicas, mas de esforços conscientes e de posturas sociais, políticas e morais coerentes; é uma conquista árdua, perseverante e de esforços conjugados.

Francisco não deixa de valorizar ações positivas de 2015 para assegurar um futuro de paz, como a Conferência de Adis-Abeba para traçar metas para a superação da pobreza e ajudar os países mais pobres do mundo. Também cita a Conferência de Paris para reduzir os efeitos danosos das mudanças climáticas provocadas pela intervenção do homem na natureza, “casa comum” de toda a família humana. Sua encíclica Laudato sì – sobre o cuidado da Casa Comum, chamou a atenção do mundo para a necessidade de enfrentar seriamente a deterioração ambiental.

Fazendo votos de que os esforços de paz continuem e se aprofundem em 2016, o papa convida a trabalhar com perseverança na promoção da justiça e da solidariedade. Apesar dos aparentes insucessos no cultivo da paz, não se deve perder a esperança na capacidade humana de superar os males que impedem a paz.

Um dos graves riscos para a paz é a indiferença e a resignação diante da guerra e da violência. Pode até ser cômodo pensar que não podemos fazer nada para mudar os conflitos que acontecem longe de nós; aquelas bombas não nos atingem, nem é nosso o sangue que escorre por lá. Mas é preciso levar a sério a condição solidária da humanidade e a interdependência, que liga o destino de todos ao de todos; sem esquecer que a guerra dos outros também pode acabar com a nossa paz.

Francisco adverte seriamente contra a globalização da indiferença, convidando a superar visões e interesses individualistas, a apatia e o cinismo que destroem. Ninguém deveria ficar indiferente diante da angústia e dor do próximo, sobretudo dos membros mais frágeis da família humana. É a própria dignidade humana que nos deve fazer sentir responsáveis uns pelos outros e agir solidariamente.

Do mesmo princípio de solidariedade também decorre o necessário cuidado e a salvaguarda do bem comum. A natureza, com todos os seus elementos, é a casa que oferece abrigo, sustenta e dá condições de vida a todos. Depredá-la ou descuidar dela é fazer mal a todos os ocupantes dessa casa comum. Lamentavelmente, em tempos de ampla globalização das informações, há uma tendência acentuada a refugiar-se no âmbito individual e na indiferença.

Em relação a Deus, a indiferença vem de um humanismo equivocado, que erige o homem, com seus desejos e vontades, como instância suprema de todas as coisas. Este humanismo é fruto do materialismo prático, que leva a viver e agir como se Deus não existisse e como se o homem fosse o autor de si mesmo, da vida e do mundo. Nessa autossuficiência narcisista, ele passa a ocupar o lugar de Deus e pensa não dever nada a ninguém e ter somente direitos.

A hiperinformação, aliada à superficialidade e ao escasso senso crítico, pode anestesiar a alma, os sentimentos e as emoções. Assiste-se a tudo como se os fatos reais fossem ficção e os acontecimentos mais trágicos podem despertar apenas curiosidade em torno de estatísticas, quantidades ou detalhes mais exóticos. Tudo como se fosse um filme, e não como dura realidade que atinge a pele e o sangue de pessoas reais, membros da nossa mesma raça humana.

O aumento das informações não traz necessariamente maior sensibilidade ou abertura da consciência diante do próximo. Vistas as cenas e ouvidos os informes, tudo continua igual e cada um continua a cuidar da própria vida, sem se envolver, sem compaixão, sem reação ética. A indiferença cega e surda diante do grito de angústia dos outros nos torna incapazes de sentir com eles e leva facilmente a encontrar motivos para apaziguar a nossa consciência.

Quando o homem não reconhece mais nenhuma norma além e acima de si mesmo, acaba justificando também as injustiças em relação ao próximo, a desonestidade, a corrupção moral e a violência na busca de vantagens e interesses a qualquer preço. O mesmo indiferentismo frio e insensível em relação a Deus e ao próximo também pode estar na base das graves ameaças à sustentabilidade do ambiente da vida.

A solidariedade, para a superação da indiferença, não é apenas um vago sentimento de comiseração, mas uma virtude moral, que se traduz em comportamentos pessoais e sociais coerentes e proativos. Na superação da indiferença, todos podem fazer a sua parte: os pais e educadores podem ensinar as crianças e os adolescentes a pensar e agir de forma solidária; formadores de opinião e agentes culturais podem destacar o valor da solidariedade nos modos de vida e de cultura; comunicadores podem manter a consciência social alerta para as ações de solidariedade.

Muitas vezes isso significará ir contra a tendência a centralizar tudo nos interesses e benefícios individuais. Aos cristãos, Francisco recomenda que suas comunidades sejam, em toda parte, “oásis de misericórdia e solidariedade”.

Aos chefes de Estados Francisco faz três apelos para a edificação da paz: não arrastar outros povos para conflitos e guerras; cancelamento ou gestão sustentável da dívida internacional dos países mais pobres; adoção de políticas de cooperação entre as nações. Oxalá também esses apelos não caiam na indiferença e no vazio.

* DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opinião por DOM ODILO P. SCHERER