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Solidariedade paulista

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Por Luiz Augusto Pereira
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Em 2008, 55% dos familiares abordados por equipes médicas em hospitais paulistas logo após a morte de um parente próximo autorizaram a retirada e a doação dos órgãos para transplante. Trata-se de um índice considerável, que reflete a solidariedade paulista, genuinamente brasileira, num dos momentos mais difíceis, que é o da perda de um parente, ocorrida geralmente de forma brusca e inesperada. Casos como a morte da jovem Eloá Pimentel, brutalmente assassinada no município de Santo André e que teve seus órgãos doados pela família, são emblemáticos e certamente contribuem, em razão da grande exposição na mídia, para conscientizar ainda mais as pessoas e esclarecer sobre o processo da doação e do transplante. Não é nada fácil explicar, pois não faz parte do senso comum, que uma pessoa está clinicamente morta mesmo com o coração batendo e os órgãos vitais preservados. E esta é a condição de todo potencial doador de órgãos. Por isso o trabalho realizado pelos profissionais de saúde no esclarecimento dos familiares sobre o diagnóstico da morte encefálica e a possibilidade da doação também merece ser valorizado. O recorde que o Estado de São Paulo atingiu na doação de órgãos, com 1.485 transplantes em 2008, 31,8% mais do que no ano anterior, está diretamente ligado ao aprimoramento do trabalho das equipes de Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), responsáveis pela captação e viabilização do processo de doação nos hospitais do Estado, bem como da mudança de conduta de médicos e enfermeiros que atuam nas unidades de terapia intensiva (UTIs) e nas emergências. O número de órgãos transplantados é contabilizado em São Paulo desde 1998, ano de consolidação do Sistema Nacional de Transplantes, quando houve 594 cirurgias no Estado. Foram 719 em 1999, 887 em 2000, 938 em 2001, 915 em 2002, 1.059 em 2003, 1.332 em 2004, 1.077 em 2005, 1.165 em 2006 e 1.127 em 2007. Em 2008 houve 74 transplantes de coração, 122 de pâncreas, 812 de rim, 429 de fígado e 46 de pulmão. Nos últimos três anos, a Secretaria de Estado da Saúde decidiu adotar uma outra postura diante da problemática da doação de órgãos, indo além das campanhas de esclarecimento voltadas para a população. Seguindo modelo aplicado na Espanha, país considerado exemplo nesta área, com índices médios de 40 doadores por milhão de população, São Paulo iniciou um trabalho de formação de especialistas em procura, identificação e notificação de potenciais doadores de órgãos. Cerca de 500 profissionais de saúde foram capacitados desde 2006, num curso de imersão totalmente financiado pela secretaria. As aulas, que são ministradas num ambiente que simula uma UTI com paciente em quadro de morte encefálica, esclarecem como identificar e notificar potenciais doadores, mantê-los em condições clínicas para a retirada de órgãos e, principalmente, como abordar corretamente os familiares num momento de dor para autorizarem a doação. Os participantes também são orientados sobre como realizar os dois exames clínicos que avaliam ausência de reflexos no paciente e o exame gráfico que comprova falta de fluxo ou atividade elétrica cerebral, além de receberem informações sobre a legislação nacional que rege o sistema de transplantes. Após o início desse trabalho de formação, o número de notificações de potenciais doadores no Estado só vem aumentando. Em 2006 os hospitais informaram à Central de Transplantes 1.719 pacientes com suspeita de morte encefálica. No ano seguinte foram notificados 1.965 doadores em potencial e em 2008, 2.307. Hospitais que nunca haviam feito nenhuma notificação passaram a fazê-lo, contribuindo para elevar de forma contundente o número de doadores viáveis, ou seja, que têm pelo menos um dos órgãos aproveitado para transplante. O aprimoramento da captação realizada pelos Bancos de Olhos também propiciou outro recorde no Estado, que pela primeira vez na história conseguiu zerar o número de pacientes em lista de espera para transplante de córneas na capital, na Grande São Paulo e no litoral, além de ter reduzido de forma expressiva a fila no interior. Se há cinco anos os pacientes aguardavam até dois anos para fazer a cirurgia, atualmente já é possível, em muitos casos, realizar o transplante na mesma semana da inscrição na lista da Secretaria da Saúde. No total foram realizados, em 2008, 6.198 transplantes de córneas, consideradas tecidos, ante 4.935 no ano anterior, 5.306 em 2006, 4.630 em 2005, 3.404 em 2004, 3.206 em 2002 e 2.498 em 2001, a primeira vez que o número foi contabilizado durante o ano todo. Somadas as cirurgias de córneas e órgãos, São Paulo registrou em 2008 quase um transplante por hora. Na capital o índice de doadores de órgãos por milhão de população (pmp) chegou a 21,8, próximo do padrão norte-americano, que é de 25. Na região de Ribeirão Preto esse índice chegou a 26,3. Na média, a taxa de doadores pmp no Estado ficou em 12, praticamente o dobro do número nacional. Em que pesem a reconhecida infraestrutura hospitalar e a qualidade e a capacidade das equipes médicas paulistas para a realização de transplantes, 80% dos quais pelo Sistema Único de Saúde (SUS), muito ainda falta, evidentemente, para chegarmos ao patamar dos países desenvolvidos no que se refere à doação de órgãos. Mas as recentes conquistas e os números alentadores nesta área nos dão a certeza do comprometimento inequívoco que une poder público, hospitais, profissionais e população na luta pela vida. Luiz Augusto Pereira, médico intensivista, é coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo