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Sombras de 1929

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Por Aloizio Mercadante
3 min de leitura

"A vantagem de uma memória ruim é que pode desfrutar as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez" Nietzsche A frase de Nietzsche pode ser invertida: a desvantagem de uma memória ruim é que se pode passar pelos mesmos maus acontecimentos como se fosse a primeira vez. Pois bem, 80 anos depois da crise de 1929, é o que parece estar acontecendo com alguns países e autoridades econômicas. As lições daquela grande crise, a única que pode ser comparada à crise atual, parecem ter sido tragicamente esquecidas. E são lições duríssimas, que não podiam ter sido esquecidas. Nos EUA, epicentro da débâcle de 1929, a reação à crise foi titubeante e equivocada. O presidente Herbert Hoover nunca entendeu a natureza real da crise, que considerava expressão das flutuações normais do ciclo de negócios. Sua política de compras de excedentes agrícolas fracassou e seus programas de obras pública foram extremamente modestos. Também se recusou a desenvolver programas de ajuda direta aos desempregados e aos pobres, pois considerava que isso os corromperia. Resultado: em apenas quatro anos a produção industrial dos EUA despencou 30%, quase 11 mil bancos faliram e o desemprego atingiu 25% da população ativa. Na realidade, a reação apropriada à crise só veio em 1934, com Franklin D. Roosevelt, quando a economia dos EUA já estava exangue. Mesmo com as novas e corretas medidas anticíclicas adotadas por Roosevelt, como o aumento dos investimentos públicos, a criação de frentes de trabalho, os programas de grandes obras públicas de infraestrutura, além do saneamento do sistema financeiro, a economia norte-americana só recuperou sua dinâmica pré-1929 em 1941. Pagou-se um preço altíssimo pela timidez e pelos erros iniciais. Outro erro crasso foi ter-se apelado para o nacionalismo protecionista, falsa saída de forte apelo popular para a crise. A Lei Smoot-Hawley, adotada em 1930, que quadruplicou as tarifas norte-americanas, teve papel decisivo no agravamento do quadro recessivo. As retaliações em cadeia a que deu origem levaram a uma contração de quase 70% nos fluxos de comércio mundial durante seu período de vigência (1930-1933), com as consequências conhecidas sobre a evolução das economias norte-americana e mundial. A falta de coordenação internacional para se combater com consistência uma crise que era sistêmica e mundial fez com que os esforços nacionais fossem difusos e pouco efetivos. Mas talvez o erro mais nefasto tenha sido não ter prestado atenção aos desdobramentos sociais e políticos da depressão. O aumento exponencial do desemprego e a precarização das condições de vida de grande parte da população atingiram nos anos 30 feições de verdadeira catástrofe social. Isso serviu como caldo de cultura para o fortalecimento de movimentos de caráter nacionalista, xenófobo, totalitário e belicista, como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. Embora as raízes desses movimentos remontem ao período pré-crise, os efeitos da depressão favoreceram sua consolidação. A 2ª Guerra foi, em parte, um desdobramento da crise não combatida a tempo e de forma coordenada. O mundo desagregou-se, econômica, social e politicamente. Infelizmente, a crise atual parece querer mimetizar 1929 em suas consequências. A generalização da recessão, abrangendo, em maior ou menor grau, todas as economias desenvolvidas e as principais economias emergentes, vem provocando forte aumento do desemprego. Uma onda de instabilidade social começa a alastrar-se na Europa e já provocou a queda de dois governos (Islândia e Bélgica) e uma escalada de protestos na França, Grécia e Inglaterra. Paralelamente, começam a aparecer em diversos países sinais de ressurgimento do nacionalismo econômico, mais evidentes nos EUA e na França, e manifestações explícitas de xenofobia, principalmente na Itália e na Inglaterra. Mas o pior é que a crise de hoje parece também querer reproduzir os trágicos erros do passado. Após uma tentativa de tímida coordenação mundial, os esforços se voltam agora para o nacionalismo protecionista. No pacote de Barack Obama inseriu-se a proteção ao aço norte-americano, prejudicando o Brasil. No Mercosul, em vez de investir na integração, a Argentina pede proteção tarifária para sua indústria, o que suscitou contraproducentes ameaças de retaliação no Brasil. Ainda no âmbito desse bloco, alguns discutem a entrada da Venezuela, o país com o qual temos o maior saldo comercial, como se fosse um plebiscito sobre o governo Hugo Chávez. Esquecem que isolacionismo e protecionismo, além de não serem instrumentos de construção de um processo de integração, constituem, na atual conjuntura, receitas certas para o desastre. A história mostra que na bonança se devem respeitar os mecanismos prudenciais que protegem a economia e na crise as iniciativas têm de ser criativas e ousadas. Está-se fazendo o contrário: houve imprudência suicida na criação da bolha especulativa que desencadeou a crise e, agora, peca-se pela hesitação e falta de ousadia e criatividade. A resistência dos EUA às iniciativas de regulação multilateral do sistema financeiro, o não-equacionamento dos problemas estruturais de solvência nos setores imobiliário e financeiro da economia norte-americana, a timidez das medidas até agora implementadas para a reativação das economias e as tendências de recrudescimento do nacionalismo econômico não são propriamente exemplos de ousadia e criatividade. Esperemos que os desafios colocados pela crise nos ajudem, antes que seja demasiado tarde, a recuperar, 80 anos depois, a memória histórica e vivenciar, como se fosse a primeira vez, as coisas boas, como a era de ouro do capitalismo regulado e civilizado, ao qual se referiu Hobsbawn. Aloizio Mercadante, economista, professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador (PT-SP)