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''Subprime jurídico'' em tempos de crise?

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Por Luciano Benetti Timm
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Juristas e economistas nunca se entenderam no Brasil, assim como parece que a economia e a ordem jurídica brasileira também jamais se encontraram. A democratização do País trouxe a Constituição de 1988, que, influenciada pela Constituição Socialista Portuguesa e por outras Constituições sociais (como a Mexicana), elenca uma série de direitos sociais voltada para a transformação da realidade social. Havia a crença de que se corrigiria a "injustiça social" herdada da economia brasileira da era militar - que teria gerado crescimento econômico, mas não a distribuição desses benefícios para toda a coletividade. Foi uma Constituição que estabeleceu um programa para instituir, pela via jurídica, um Estado provedor, promovendo mecanismos coercitivos de solidariedade social e ensejando a abertura da discussão sobre a assim chamada "politização" do Direito. Paralelamente a isso, os cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito começaram a se institucionalizar no País dentro de linhas sociológicas e políticas "críticas" e, portanto, absolutamente distantes do mundo dos negócios. Simultaneamente, alguns juízes passaram a ser organizar em movimentos de acesso à Justiça, dita "democratização" e, em alguns casos, até de promoção de um "direito alternativo". Em contrapartida, economistas, nesse período, empenhavam-se em tentar debelar a inflação (é bem verdade que os mais brilhantes, como Mário H. Simonsen e Roberto Campos, tiveram tempo de prever consequências econômicas prejudiciais advindas do texto constitucional). A partir da Constituição federal seguiu-se, no plano legislativo, todo um movimento "socializador" e "politizador" do Direito - inclusive e, sobretudo, no âmbito do Direito privado - voltado para a repartição das riquezas. Foi aprovado um Código de Defesa do Consumidor para proteger os consumidores, uma nova Lei do Inquilinato para proteger os inquilinos e um Novo Código Civil (2003), que foi igualmente "socializado", tanto que é recheado de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, como "função social da propriedade" e "função social dos contratos". Paradoxalmente, após a Constituição federal social, Fernando Collor de Mello assume o poder político, promove abertura econômica e insere o Brasil na economia globalizada, política que foi seguida por seus sucessores. Ou seja, a partir da Constituição de 1988, de um lado "estatizou-se" o Direito e, de outro lado, privatizou-se a economia do País. Vale dizer, criamos uma ordem jurídica pós-democracia absolutamente opaca ao sistema econômico. Muitos juristas brasileiros ainda acreditam que é justamente esse o papel do Direito, ou seja, atuar sobre a realidade econômica. Em última análise, deve-se decidir quem tem razão no caso levado ao tribunal, pouco importando a consequência (econômica) disso. Importa, sim, na visão de muitos, a integridade da "ponderação de princípios postos na Constituição", numa atitude que pode muito bem ser qualificada de (pelo menos como foi ensinada na maioria das faculdades de Direito e praticada em alguns casos) "farra principiológica", na feliz expressão de Ronaldo Macedo. Os juristas não são os únicos culpados pelo isolamento mútuo. Antes de Collor (e também durante), na década de 80, o País foi assolado por "economistas pacoteiros", na expressão de Gustavo Franco, cujos planos econômicos atentaram contra a ordem jurídica reiteradamente, numa vã tentativa de fazer alguns modelos econômicos (heterodoxos, diga-se de passagem) funcionarem. Para os economistas, a ordem jurídica do País parecia um mero ceteris paribus, revelando em alguns casos pouco apreço pela democracia com valor político. Ocorre que os problemas derivados da crise econômica estão batendo à porta do Judiciário e se tornando questões jurídicas. É a imprevisibilidade da variação da taxa do dólar nos contratos derivativos, é a necessidade de cobrar de devedores impontuais e executar as garantias e há também as discussões sob a ótica trabalhista, como a questão da manutenção do emprego (caso Embraer). Um juiz que teve sua formação acadêmica no Brasil após 1988, em nível de graduação ou pós-graduação, aprendeu fundamentalmente Direito Público e Processo. O Direito Civil e o Direito Empresarial foram dilacerados, porque perderam sua essência, que é econômica e privada, e hoje são considerados por muitos quase como um apêndice do Direito Constitucional. O contrato deixou de ser uma promessa bilateral entre as partes com conteúdo econômico para se tornar o espaço da justiça social e da dignidade humana. A empresa deixou de ser o fator de organização dos fatores de produção para geração de eficiência e de riqueza para se tornar o locus da geração de emprego e de proteção ao meio ambiente. A propriedade deixou de ser um conjunto de direitos sobre bens para se tornar um fardo coletivo. E o processo civil? Ele permanece normalmente identificado com a solução individual de controvérsias trazidas caso a caso perante os tribunais. O Estado ocupou todos esses espaços oriundos da esfera privada. Nesse contexto, como estranhar a "judicialização" do mundo da vida? Como reclamar que tudo acabe no Judiciário se se criou um sistema legal de maciça intervenção estatal na vida privada? O problema, justamente, é que em momentos de crise o mais importante seria a flexibilidade e a "responsividade" (neologismo de responsiveness) do ordenamento jurídico privado a novas situações reais e concretas criadas espontaneamente pelo mercado. É a esse contexto de absoluto conflito entre a realidade numérico-econômica e a normatividade "social" do Direito que estamos, por enquanto, condenados neste momento de crise. Será que não estamos nos dirigindo a um subprime econômico brasileiro, potencializado pelo "novo" Direito? Luciano Benetti Timm, advogado, presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia, é pesquisador de Pós-Doutorado na Universidade de Berkeley (Califórnia) e professor adjunto da PUC-RS. E-mail: ltimm@cmted.com.br