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Opinião|Sufoco fiscal e salário público

Se não for resolvida essa complicada relação, acabaremos vivendo perturbações da ordem

Atualização:

O déficit da Previdência e – tema deste artigo – a carga salarial do serviço público concorrem ponderavelmente para o sufoco fiscal que ameaça de colapso a capacidade de nossos governos federal, estaduais e municipais. Como controlar essa participação? Compensá-la aumentando impostos ou criando mais tributos seria solução temporária desastrosa. Por outro lado, “mexer” no serviço público é perigo de encrenca.

No Brasil o serviço público é meta de emprego, principalmente na classe média, que vê nele estabilidade – hoje em realce, com o mercado do trabalho encolhendo –, carreira, salários e reajustes atraentes se comparados com os do setor privado e aposentadoria privilegiada, em início de longa revisão. Essa visão clientelista e nossa ilusão de Estado provedor onipotente explicam a indiferença do servidor público ao caos fiscal, já ocorrendo em Estados onde os salários vêm sendo parcelados e atrasados: as reivindicações são feitas como se União, Estados e municípios devessem atendê-las, à revelia da indisponibilidade de recursos e do impacto sobre os encargos do poder público.

A esse problema de natureza cultural acrescente-se o pandemônio que a leniência e a conveniência deixaram crescer ao longo de décadas, fazendo do quadro salarial público um mosaico confuso e desarmônico, complicador de qualquer solução. As mesmas funções, ou comparáveis no padrão de preparo exigido, são remuneradas (salários básicos e acréscimos) em níveis distintos, até muito distintos, dependendo do Poder – Executivo, Legislativo e Judiciário – e/ou do órgão a que o servidor está vinculado. “Mexer” no serviço público implica a revisão dessa desarmonia, que, além de contribuir para inflar a carga total, é potencial indutora de insatisfação.

A solução deve estabelecer regras que controlem a carga salarial pública em coerência com a dinâmica da economia, a tributação sensata e as leis intervenientes no assunto. Uma balança que tem num dos pratos a remuneração adequada e digna – para todos, e não mais adequada e digna para alguns do que para outros – e no outro a viabilidade da carga salarial, sem inibir o exercício do governo, razão da existência do serviço público, sem castigar o povo com tributação maior e sem infringir as leis – tópico que implica rever (?) os artifícios que pretendem desconsiderar limites legais, em particular a remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal como teto individual.

Nosso caleidoscópico quadro salarial sugere que, ao menos por algum tempo, a moderação nos reajustes periódicos, necessária ao controle da carga total, incida mais forte sobre as remunerações mais altas e, em qualquer nível, nas que reflitam diferenças expressivas entre funções similares ou comparáveis no preparo exigido. Nas demais, tão menos forte quanto possível sem transgredir a lei e a responsabilidade fiscal. Seria um paradigma complexo, que, além de contribuir para o controle da carga total, ajudaria a construir um quadro menos desarmônico, inalcançável sem algumas medidas transitórias de conteúdo restritivo.

Um processo como esse – que pretende corrigir o passado e disciplinar o futuro, envolvendo os níveis salariais básicos, a miscelânea de adicionais e vantagens e a formatação de moldura legal/normativa que regule a sistemática e iniba o pandemônio – exige análise e planejamento conduzidos por servidores dos três Poderes. Militares incluídos, porque seus preceitos poderão vir a ter nuanças que os afetem. E exige o preparo criterioso de seus instrumentos legais e de execução: projetos de lei, talvez emendas constitucionais, e ações administrativas. Para serem assimilados sem ou com pouca turbulência, alguns procedimentos talvez devam ser implementados gradativamente: mosaico confuso como o atual não se corrige 100% de um dia para o outro. As medidas pretendidas e suas razões deverão ser explicadas ao povo, cujos compreensão e apoio serão úteis ao processo.

Nossa realidade indica convir que qualquer solução seja precedida por medida cuja conveniência se manifesta há muitos anos: a formulação da lei reguladora do direito de greve do servidor público, prevista na Constituição. Há que controlar o recurso à greve, mais comum em categorias capazes de paralisar setores vitais da vida nacional ou porque podem usar o sofrimento do povo como alavanca. Greve no serviço público difere da greve no setor privado: neste, trabalhadores e proprietários perdem e/ou ganham; naquele, o povo perde sempre.

Uma vez realizado algo da natureza da conjectura esboçada, ou outra com objetivos similares, o País terá um quadro de servidores organizado e harmonicamente remunerado em coerência com suas atribuições e com o alicerce fiscal que o paga, funcionando sem atropelos incompatíveis com o serviço público, como nos países desenvolvidos e organizados.

Mas se a crise fiscal e sua ameaça de consequências – incapacidade de realização dos encargos dos governos e até a impossibilidade de pagamento de salários, aposentadorias e pensões do serviço público – continuarem como hoje e se concretizando, acabaremos vivendo perturbações da ordem. Talvez compelindo à adoção emergencial de medidas de ranço salvacionista-autoritário pretendidas como solução (hipótese improvável...) do que a normalidade democrática não resolveu. Esse sinal amarelo se aplica também e com mais razão à Previdência.

Em 1989 houve uma tentativa de disciplinar o assunto, com a formulação de complemento legal aos preceitos da Constituição de 1988. O projeto de lei preparado no Executivo, talvez merecedor de aperfeiçoamentos e complementos no Congresso, foi arquivado na Câmara dos Deputados. Razão aventada: o Executivo estaria interferindo no Judiciário e no Legislativo.

Há clima e coragem para uma hoje mais complexa “segunda época”?

*Almirante