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Opinião|Sylvia Earle no Brasil

Hoje é um dia especial. São Paulo recebe a 'Primeira Heroína do Planeta'

Atualização:

Antes de apresentar Sylvia Earle, peço licença para destacar uma parte da nossa história, escrita nestas mesmas páginas anos atrás. “Pela unidade de concepção e pela admirável segurança com que foi levada a cabo, é a primeira grande conquista do espírito científico aplicado à política e, se se atentar para as suas incomensuráveis consequências, um dos maiores feitos do gênio humano de todos os tempos.”

“Compreendida assim, a História do Brasil traz-nos ao espírito a noção das nossas responsabilidades numa dimensão universal.” O autor dessas linhas, Julio de Mesquita Filho, usou-as ao apresentar um suplemento do Estadão, publicado em 1960 em comemoração do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique. Corriam os áureos anos da imprensa escrita. O Estado saiu na frente.

“Foi um feito de tamanhas proporções que demonstraríamos incompreensão da nossa História se não convocássemos os maiores vultos da historiografia luso-brasileira a colaborarem na homenagem que prestamos à memória daquele grande da História.” O suplemento, de tão bom, tornou-se livro (O Século dos Descobrimentos, Editora Anhambi), um dos melhores que já li; entre seus colaboradores, titãs do porte de Damião Peres, Mário Vasconcelos e Sá, Jaime Cortesão, Sérgio Buarque de Holanda e outros.

A epopeia portuguesa, pouco valorizada e cultivada entre nós, iniciou o processo, hoje frenético, que vivemos, da globalização. Mas sua herança foi além. A obra ousada legou dois gênios à humanidade: Camões e Fernando Pessoa. 

Nem por isso temos feito nossa parte. 

Maltratamos o mar e o litoral de forma implacável e sistemática. Em escala nacional, destruímos a esplêndida paisagem; destroçamos ecossistemas da importância dos corais, com tratores, correntes e até dinamite (Nordeste, anos 70)! Com a cal que se formava, derrubávamos o resto de Mata Atlântica usando corais moídos como corretor de solo para a cana-de-açúcar. Não satisfeitos, até hoje transformamos apenas 1,5% do bioma costeiro marinho em unidades de conservação. 

Se aprendi com meu avô a cultivar a nossa História, com Sylvia Earle aprendi que estamos ferindo “o coração da Terra”. Ela amostra que em escala planetária nossa geração conseguiu a façanha de esquentar o planeta, mudar o pH dos oceanos, tornando-os mais ácidos e corrosivos, e dilacerar a vida marinha.

Por isso hoje é um dia especial. São Paulo recebe essa referência mundialmente admirada, a “Primeira Heroína do Planeta” (Revista Time, 1988).

Com a bagagem apaixonante de toda uma vida dedicada à exploração e ao estudo do mar e da vida marinha, Sylvia Earle corre o mundo alertando que o nosso destino e o dos oceanos é um só. Matá-los, como estamos fazendo, significa nossa extinção. 

Para ela, “talvez o mais problemático seja a grande e difusa ignorância sobre o papel vital dos oceanos para a vida de todas as pessoas, de todos os lugares e épocas”.

“Hoje são comuns as manchetes sobre a preservação do ‘verde’, mas muita gente parece não saber que sem o ‘azul’ o ‘verde’ não existiria.” E prossegue: “Os oceanos regulam o clima, absorvem grande parte do dióxido de carbono da atmosfera, retêm 97% da água da Terra e abrigam 97% de sua biosfera”. 

“O mar controla a química do planeta, lançando na atmosfera a mesma água que voltará para a terra e para o mar através da chuva, da neve e do granizo, restabelecendo continuamente rios, lagos e aquíferos subterrâneos.”

“A grande questão é: o que podemos fazer para cuidar do mundo azul que cuida de nós?” 

Ela mesma responde em seu clássico livro, editado pelo Sesi- SP, A Terra é Azul – Por que o destino dos oceanos e o nosso é um só?: “Desenvolver uma rede global de áreas protegidas no oceano, os ‘pontos de esperança’, me pareceu um desejo relevante e capaz de ajudar na proteção e recuperação da saúde do oceano”.

Acrescento que não é possível se conformar com 8 milhões de toneladas de plástico despejados nos oceanos por ano; essa monstruosidade, fruto dos abusos de nossa geração, tem de parar!

Caso você precise de mais evidências sobre a extraordinária capacidade do ser humano de destruir o planeta, considere isto: em 2050 os oceanos conterão mais plástico do que peixes, em peso (relatório da Ellen MacArthur Foundation apresentado no Fórum Econômico Mundial, Davos, 2016).

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Com Sylvia Earle aprendemos que, desde os anos 50, metade dos recifes de coral em águas rasas desapareceu, enquanto os corais de águas profundas são devastados por novas tecnologias de arrastão, cujo objetivo é capturar peixes com décadas ou séculos de idade. Essa prática fez com que várias espécies tivessem sua população reduzida em 90%. Para algumas, como o atum-rabilho, o bacalhau do Atlântico e certos tubarões, a taxa chega a 95%. E sua pesca ainda é permitida.

Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2004 mostra que esses não são os principais problemas da pesca industrial, diz Sylvia, mas o que os técnicos chamam de “captura acidental”, espécies não visadas que acabam nas redes e anzóis que a “geração da sustentabilidade” criou: o arrastão e o espinhel de superfície, com linhas de até 60 km e 3 mil anzóis. “As redes, para cada quilo de camarão capturado, matam mais de 100 quilos de peixes, ervas marinhas, esponjas, estrelas-do-mar e outros. Os anzóis do espinhel dão cabo de mais de 300 mil mamíferos marinhos, centenas de milhares de tartarugas e aves marinhas e milhões de toneladas de peixes e invertebrados.” 

É ético nos conformarmos com isso?

Temos 8.500 km de litoral e uma Zona Econômica Exclusiva com cerca de 3,6 milhões de km2. 

Sylvia, obrigado por sua presença. Que ela inspire todos nós. Quem sabe assim possamos cumprir “nossas responsabilidades em dimensão universal”, criando mais “pontos de esperança” (de proteção integral, como você recomenda).

*JORNALISTA, MANTENEDOR DO SITE WWW.MARSMEFIM.COM.BR

Opinião por João Lara Mesquita