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Opinião|Terremoto político na Argentina

Atualização:

O peronismo, depois de quase 30 anos no poder na Argentina, foi derrotado nas eleições presidenciais de domingo passado. Mauricio Macri, o presidente eleito, poderá dizer sem exagero – ao contrário do que ocorreu em outro país da região – que vai receber uma verdadeira herança maldita de Cristina Kirchner.

A Argentina está paralisada, a economia não cresce há três anos, a inflação aumenta, o gasto público cresce sem controle, o câmbio dispara e seus amigos mais próximos, Venezuela, Rússia e Brasil, vivem grandes dificuldades. O número de funcionários públicos duplicou. Em dezembro o governo deverá emitir 70 bilhões de pesos para pagar os gastos de um Estado gigante e ineficiente. As limitações de dólares para as importações (em grande medida, de insumos para a indústria) e para as viagens ao exterior indicam que o Banco Central enfrenta um forte constrangimento cambial. As reservas parecem estar negativas – depósito compulsório, atrasados comerciais, holdouts e swap com yuan chinês, parcelas comprometidas com os credores –, e não ao nível oficial de US$ 27 bilhões.

O setor privado brasileiro está examinando a possibilidade de comprar os holdouts (US$ 3 bilhões de créditos privados não pagos pelo governo) e trocá-los por títulos argentinos, o que aliviaria os encargos sobre as reservas do país. O aperto cambial não está mais crítico em razão de empréstimos feitos pela China, inicialmente de US$ 11 bilhões e mais recentemente de US$ 14,5 bilhões, para financiamento de duas usinas nucleares. O preço foi o desvio de comércio em favor dos produtos chineses e da autorização para a construção de uma base de rastreamento de satélites totalmente operada pelo governo chinês.

O anseio de mudança, contudo, encontrará a política interna bastante dividida. Qual será a reação de Cristina Kirchner, que mantém liderança no peronismo e no país? Como se comportará o Congresso Nacional, onde o peronismo manteve maioria nas recentes eleições para o Legislativo, diante de um governo Macri sem maioria parlamentar?

Se as declarações públicas em entrevistas e no último debate eleitoral se transformarem em políticas, vai haver uma grande alteração no mapa político na América do Sul. A Argentina vai voltar a ser um país normal, a economia e a política externa serão certamente desideologizadas, com o afastamento das posições defensivas, protecionistas e bolivarianas. As novas políticas deverão retirar o país do isolamento em que se encontra no tocante às negociações comerciais e às restrições protecionistas.

Quanto à Venezuela, Macri prometeu distanciar-se do regime populista e disse que terminaria a estreita aliança política da Argentina com Nicolás Maduro. Durante o último debate presidencial com o governista Daniel Scioli, o presidente eleito disse que proporia a suspensão da Venezuela do Mercosul pelo não cumprimento da cláusula democrática, caso haja fraude nas eleições parlamentares de 6 de dezembro e se os presos políticos – incluindo o líder opositor Leopoldo López – não forem libertados até lá. Apesar de Mauricio Macri não dar detalhes, assessores próximos do novo presidente comentaram que o pedido de suspensão deve ser feito logo depois da posse, durante a reunião presidencial do Mercosul que, ironicamente, terá lugar no Paraguai em 21 de dezembro.

Sobre os blocos econômicos e políticos da América do Sul, Macri disse que sua prioridade será forjar uma “aliança estratégica” com o Brasil para, conjuntamente, iniciar conversas para aproximação da Aliança do Pacífico, com o que pretende dar um sinal inequívoco de mudança em relação à globalização e à negociação de acordos comerciais. Até aqui a Argentina foi contrária a essa aproximação e acompanhou a Venezuela e a Bolívia, que consideram a Aliança demasiado próxima do “imperialismo” norte-americano.

Quanto às relações com os Estados Unidos, Macri disse que renovaria o vínculo bilateral e que a prioridade com Washington seria coordenar esforços conjuntos na luta contra as drogas. A retórica antiamericana seria reduzida significativamente. “Nosso governo optou pela confrontação sistemática com quase todo o mundo e nos deixou numa situação de muito isolamento”. Temos de voltar ao mundo para recuperar mercados”, disse Macri.

A vitória de Mauricio Macri poderá ter efeitos profundos sobre os interesses brasileiros e para o Mercosul.

Na área comercial, há uma extensa agenda represada que passa pela eliminação de barreiras ilegais ao intercâmbio bilateral, pela negociação do acordo automobilístico e de um acordo de livre-comércio entre as pequenas e microempresas brasileiras e argentinas.

Em relação ao Mercosul, a nova postura liberalizante poderá facilitar o avanço das negociações com a União Europeia pela maior flexibilidade argentina na formulação da oferta de produtos abaixo do nível esperado, por pressão restritiva de Buenos Aires.

Se, por um lado, a nova linha de ação na política externa e comercial favorecerá o Brasil, por outro, poderá deixar o nosso país em situação desconfortável. A mudança de atitude em relação à Venezuela poderá deixar mais exposta a afinidade ideológica do Brasil com o bolivarianismo. Brasília evita fazer críticas públicas a Maduro no tocante aos sucessivos arranhões à democracia e à sua política de direitos humanos, como ocorre em relação às próximas eleições parlamentares, e à nossa omissão diante do não pagamento de dívidas às empresas brasileiras pelas exportações e por serviços prestados naquele país.

O eixo Buenos Aires-Caracas sairá enfraquecido e o eixo Brasília-Buenos Aires poderá voltar em outras bases.

Ventos de mudança sopram na região. A derrota do populismo distributivista na Argentina indica o caminho que outros países deverão seguir no curto e no médio prazos.

* RUBENS BARBOSA É PRESIDENTE DO CONSELHODE COMÉRCIO EXTERIOR DA FIESP

Opinião por RUBENS BARBOSA