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Opinião|Terrorismo

Atualização:

O contraste entre o humor e o sangue a correr, no frio assassinato ordenado pelo radicalismo religioso, fez do ataque ao semanário Charlie Hebdo um soco no estômago. Como milhares, fui atingido pelo desprezo, em nome da religião, ao valor da vida e da liberdade de crítica como contestação para revelar o outro lado das verdades dadas como certas, com sátira própria de sociedade laica e pluralista. Os redatores do Charlie Hebdo morreram por terem tido a "ousadia" de criar charges mostrando pelo humor o ridículo dos exageros dos fundamentalismos, altamente restritivos das conquistas obtidas pela nossa civilização ocidental em favor da autonomia e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Cada um de nós foi lesionado no dia 7 de janeiro. Os tiros espalharam-se, ferindo os alicerces que sustentam a democracia, fincados na História pelo povo francês com seus pensadores e com a Declaração dos Direitos do Homem em 1789. Sendo o berço das liberdades democráticas, todavia, a França tem sido vítima de atos de terrorismo de várias fontes, direta ou indiretamente. Foi um ato terrorista, em julho de 1914, promovido pelas sociedades secretas Mão Negra e Jovem Bósnia, que matou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro presuntivo da Áustria, e levou à sangrenta 1.ª Guerra, na qual morreram milhões de franceses. De lá para cá, vários atos terroristas assolaram a França, bastando lembrar os plásticos explosivos utilizados pela OAS, a Organization de l'Armée Secrète, na luta da independência da Argélia. Segundo o artigo 421.1 do Código Penal francês, constituem atos de terrorismo os atentados voluntários à vida e à integridade física, sequestros e apoderamento de meios de transporte, bem como extorsões e destruição que tenham por fim conturbar a ordem pública mediante intimidação e medo. Em 1986 mais de 20 atentados ocorreram, sendo 15 de responsabilidade do grupo de Fouad Ali Saleh, denominado "Ali, le Tunisien", que visava a punir a França por seu apoio ao Iraque na guerra contra o Irã. Data daquele ano o início de uma legislação contra o terror e um serviço especial de combate ao terrorismo junto ao Ministério Público. Em 1995 deu-se o atentado à bomba praticado por radical islâmico na estação de metrô Saint-Michel, em Paris, deixando 8 mortos e 117 feridos. Em 1996 editou-se, então, o artigo 421.2-1 do Código Penal, pelo qual é crime participar de grupo formado visando à preparação de atos de terrorismo. Em 2005 firmou-se a Convenção Europeia para Prevenção do Terrorismo, conscientes os países da inquietude causada pelos atos terroristas, estabelecendo-se ampla cooperação no campo da troca de informações e na coordenação de situações de crise. Importante o compromisso de tolerância assumido na convenção, encorajando-se o diálogo entre religiões com a participação do governo e da sociedade civil, visando a impedir tensões que pudessem levar à prática de terrorismo. A França continuou palco de atentados terroristas nas primeiras décadas do nosso século, vindo a ocorrer grave atentado em Toulouse em março de 2012, com a morte de militares e ataque a uma escola judaica. Novo projeto de lei contra o terrorismo foi apresentado e apenas aprovado em novembro passado, prevendo medidas excepcionais como a sustação, decretada pelo Executivo, de passaporte de imigrantes suspeitos pretendentes a viajar para países fonte de terrorismo; considerar crime preparar a prática de projeto terrorista individual; criação do crime de apologia ao terrorismo, especialmente na internet, com obrigação dos servidores de retirar imediatamente qualquer incitamento de ação terrorista; autorização para escutas e infiltração em rede da internet, sendo algumas das providências limitativas de direitos individuais sem prévio crivo do Judiciário. Malgrado o conjunto de leis penais e de permissão de prisão temporária pela própria polícia, de cunho inconstitucional, não se impediu o atentado ao Charlie Hebdo. Se as previsões legais não tornar inviáveis todas as ações terroristas, deve-se, contudo, imaginar o que ocorreria se não existissem. O Brasil, mesmo signatário da Convenção Interamericana contra o Terrorismo e da Convenção Internacional de Prevenção ao Financiamento ao Terrorismo, não tem em seu ordenamento a figura penal do terrorismo, pois ainda vigora a Lei de Segurança Nacional da ditadura, em cujo artigo 20 se mencionam atos de terrorismo por inconformismo político, mas sem especificar o que sejam. A Constituição menciona que o Brasil repudia o terrorismo. Por sua vez, a Lei de Organização Criminosa, Lei n.º 12.850/13, no artigo 2o refere-se às organizações terroristas internacionais, mas não as define. Em 2002, estando à frente do Ministério da Justiça, levei o governo a encaminhar projeto de Lei dos Crimes contra o Estado Democrático, como título do Código Penal, mas que perdura até hoje sem exame pelo Congresso Nacional. Nesse projeto, cujo coordenador foi o saudoso professor Luiz Vicente Cernicchiaro, tendo como um dos membros o hoje ministro Luís Roberto Barroso, define-se terrorismo: praticar, por motivo de facciosismo político ou religioso, com o fim de infundir terror, ato de devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar, incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, causando perigo efetivo ou dano a pessoas ou bens; ou apoderar-se ou exercer o controle, total ou parcial, de meios de comunicação ao público ou de transporte, portos, aeroportos, bem como de estabelecimentos destinados a prover a população de serviços essenciais. É preciso que o Brasil legisle sobre terrorismo e prevenção ao seu financiamento, hoje sofisticado, antes que eventual atentado leve a criar legislação de afogadilho, então respondendo aos fatos, em instante de comoção, com possível violação de garantias constitucionais. ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por MIGUEL REALE JÚNIOR