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Opinião|Todos os deputados do mundo

Nem todos são preguiçosos, ignorantes e venais, veja-se o caso de Justin S. Morrill

Atualização:

O que mais se ouve atualmente é que todos os deputados do mundo são preguiçosos, ignorantes e venais (não necessariamente nessa ordem). Não concordo com tal argumento, mas admito que refutá-lo está ficando cada vez mais difícil. Vinha procurando um método, mas nenhum me ocorria. Sair em viagem pelo mundo a fim de assistir a sessões legislativas até poderia ser agradável, mas dificilmente compensaria as despesas.

A certa altura tive uma ideia. O jeito seria recorrer à lógica elementar que aprendi nos bancos escolares. Vejam bem: as três qualidades negativas a que me referi têm sido atribuídas aos deputados em caráter geral. “Todos” eles seriam preguiçosos, ignorantes e venais. Nenhum presta. Ora, se assim é, um caso contrário é tudo o que se requer para invalidar o argumento. Optei, pois, por esse método e creio havê-lo aplicado com bons resultados. Foi trabalhoso, claro. Pesquisei centenas de arquivos de vários países, li milhares de biografias, analisei um sem-número de projetos, mas encontrei, finalmente, o que procurava: um americano chamado Justin S. Morrill, que em 1854 teria chegado a Washington como representante conservador do pequeno Estado de Vermont.

Não pretendo endeusar o rapaz. Colhi indícios de que, em seus primeiros meses de mandato, ele padeceu tormentos semelhantes aos que diariamente observamos em Brasília. Hesitava entre escolher o nome de uma rua ou batalhar por uma emenda parlamentar para financiar melhoramentos em sua cidadezinha natal. A sorte dele foi que, naqueles tempos, só existia imprensa escrita. Podia dar toda a atenção necessária aos jornalistas, pois muito tempo lhe sobrava para ir à biblioteca, visitar alguma repartição ministerial e consultar especialistas sobre alguma questão que lhe viesse à mente.

E foi então que o simpático Morrill teve um autêntico estalo de Vieira. Extraordinária e relevantíssima para o Brasil, a história está magnificamente relatada no capítulo 52 do livro Americans – The Democratic Experience, de Daniel J. Boorstin. Meditando sobre a lamentável situação educacional de seu país naquele tempo, o deputado Morrill convenceu-se de duas coisas. Primeiro, que o acesso à educação era extremamente restritivo. Era imperativo ampliá-lo, massificá-lo, democratizá-lo. Segundo, de latinórios e letras clássicas o país estava bem servido. As vetustas universidades do leste, notadamente Yale e Harvard, davam perfeitamente conta do recado. Partindo dessas duas constatações, Morrill deitou mãos à obra. Leu relatórios, escreveu um monte de notas, elaborou um projeto de lei e aí, sim, fez um trabalho de formiguinha, angariando apoios para sua proposta.

Sua ideia era um autêntico ovo de Colombo. Naquela década – a que precedeu a Guerra de Secessão, 1861-1865 – existia no país uma vasta quantidade de terras públicas, das quais o governo federal podia dispor livremente, sem necessidade de tributar os indivíduos ou entidades que eventualmente as recebessem. Em 1859 o presidente Buchanan vetou o projeto, mas Morrill não se deu por achado. Insistiu, insistiu, até que em 1862 o presidente Lincoln sancionou a Lei Morrill. E foi assim, com o país vivendo uma guerra sangrentíssima, que se veio a implantar uma das mais audaciosas reformas educacionais de que o mundo tem notícia.

O objetivo, que ficou conhecido como land-grant colleges, era implantar um college (uma universidade com o nível comparável ao nosso bacharelado) em cada Estado. A terra fornecida pelo governo seria utilizada ou parcialmente vendida a fim de financiar o empreendimento. Em contrapartida, os Estados comprometiam-se a imprimir a tais colleges uma orientação definida: o aprimoramento da agricultura e o desenvolvimento das “artes mecânicas” (leia-se: tecnologias), tudo em termos eminentemente práticos. Ofereceriam modalidades de instrução capazes de produzir um impacto imediato na economia e de promover a ascensão social das “classes industriais” (entenda-se: gente com aptidão empresarial, notadamente entre as camadas de menor renda).

Por volta de 1880, o sucesso creditável à Lei Morrill era nada menos que espetacular. As terras doadas tinham ajudado não só a aumentar algumas das universidades tradicionais, como também a edificar uma inteiramente nova – a Universidade Cornell, no Estado de Nova York – e a implantar dezenas de novos estabelecimentos, incluídos seis voltados especificamente para a parte negra da população. Daniel J. Boorstin afirma, com toda a razão, que o programa dos land-grant colleges desencadeou uma mudança cultural sem precedentes no país. Dali em diante, firmou-se a convicção de que todo cidadão americano teria direito não apenas à educação, genericamente falando, mas a um sistema de educação superior de alta qualidade.

Do acima exposto, meus eventuais leitores e leitoras haverão de convir que, se tivesse tido uma ideia semelhante, Vladimir Illich Lenin teria embarcado em outra canoa, não na que levou à sua “ditadura do proletariado” e a sete décadas de um regime totalitário que deixou um séquito inacreditável de cadáveres. Os land-grant colleges foram a espinha dorsal de uma revolução democratizante inteiramente compatível com o liberalismo político. Se tivesse vivido o suficiente para assistir à implementação do programa, o nunca assaz louvado Alexis de Tocqueville não teria perdido tantas noites de sono procurando uma fórmula que harmonizasse as tensões inevitáveis na redução de desigualdades sociais com a vigência de um regime livre e democrático, assentado no Estado de Direito.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das academias Paulista de Letras  e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais: a Luta Ideológica de Nosso Tempo’ (Companhia das Letras, 2016)