Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Transação perigosa

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Por Redação
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A crer nas justificativas invocadas pelo governo quando o enviou à Câmara dos Deputados, onde tramita em regime de urgência, o projeto de lei que cria a transação tributária, se aprovado, criará condições para a Receita Federal recuperar créditos praticamente incobráveis nas condições atuais e para contribuintes que não haviam recolhido os tributos devidos limparem seu cadastro sem precisar de decisão judicial. No entanto, o projeto está eivado de vícios. Por exemplo, embora limite o poder da Câmara-Geral de Transação e Conciliação da Fazenda Nacional (CGTC) - cuja criação prevê - para reduzir os valores devidos, o projeto do Executivo concede a essa Câmara, que é um órgão de natureza administrativa e não judicial, o poder de cancelar tributo, o que, de um lado, pode ser interpretado como usurpação de competência exclusiva da Justiça e, de outro, abrir espaço para a corrupção. Mais ainda, ao permitir a negociação de dívidas tributárias por iniciativa do devedor, o projeto cria uma espécie de "Refis" permanente - isto é, uma renegociação de dívidas tributárias em condições favorecidas, sempre que isso for do interesse do contribuinte -, o que o transformaria num grande estímulo para o não recolhimento dos tributos no prazo devido. Sabendo que pode obter prazos longos para o pagamento do principal e livrar-se dos encargos de mora, o contribuinte deixará de recolher o tributo no prazo e escolherá o momento mais adequado para negociar suas dívidas. O projeto de Lei Geral de Transação faz parte de um conjunto de quatro iniciativas legislativas - dois outros projetos de lei e um projeto de lei complementar, que altera o Código Tributário - que o governo enviou ao Congresso em abril, para atender a compromissos firmados em 2004 pelos presidentes dos Três Poderes, no chamado Pacto Republicano, destinado a acelerar as decisões do Judiciário. Ao trazer para a esfera administrativa a discussão das disputas entre o Fisco e os contribuintes, a transação abriria caminho para a solução mais rápida dos conflitos. A rapidez interessa ao governo, pois, como observou o ministro Guido Mantega, na exposição de motivos da proposta, o estoque da dívida ativa da União é de R$ 600 bilhões; a que está em litígio na esfera administrativa totaliza R$ 900 bilhões. A soma das dívidas representa 1,5 vez a arrecadação da União de 2006. Por meio da execução judicial, o governo consegue arrecadar por ano menos de 1% do total da dívida. A negociação pode aumentar esse porcentual, além de aliviar o Judiciário e reduzir o trabalho da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). "É a relação moderna entre o Fisco e o contribuinte", justificou o coordenador-geral de Assuntos Tributários da PGFN, Arnaldo Godoy, em entrevista ao repórter Lourival Sant?Anna, do Estado. "É preciso acabar com o chicote na mão, para ter o diálogo." Sob esse aspecto, a proposta está correta. Os projetos, porém, contêm detalhes que poderão produzir resultados indesejados. Transação implica concessões mútuas das partes. Mas o projeto de lei complementar que altera o Código Tributário para adaptá-lo às mudanças retira do texto em vigor a expressão "mediante concessões mútuas", o que impõe a necessidade de fazer concessões apenas a uma das partes - justamente o governo. O projeto sobre transação tributária diz que "a transação (...) não pode implicar negociação do montante devido". Mas, pouco adiante, cria as condições até para o cancelamento do principal, ao estabelecer que "reduções que decorram de transação, quanto à interpretação de conceitos indeterminados do direito ou à identificação e relevância do fato (...) cujo resultado seja a redução de parte do crédito tributário" não constituem "negociação do montante dos tributos". Isso permite que a CGTC discuta se o tributo é devido ou não, o que lhe dá poder de anular tributo. Na visão de tributaristas, só a Justiça pode julgar se o imposto é devido ou não. Ou seja, pelo projeto, decisões que até agora dependem do Judiciário passam para a responsabilidade de um órgão administrativo - o que abre as portas para a corrupção.