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Opinião|Turbulência hidrelétrica

A rivalidade histórica Brasil-Argentina logo será página virada. Ou melhor, quase virada...

Atualização:

Da época das independências ao século 20, as relações Brasil-Argentina foram contaminadas pela herança ibérica de antagonismo e pela ideia correlata de hegemonia regional. Chegaram ao confronto militar no conflito que levou à independência do Uruguai e contenciosos de fronteira justificaram preocupação no fim do século 19 e início do 20.

Dos anos 1950 até hoje a rivalidade histórica tem decrescido, mas volta e meia essa evolução positiva é tumultuada por confrontos cujas razões são emocionalmente infladas pela inércia cultural. Este artigo versa sobre o maior deles: a crise Itaipu x Corpus nos anos 1970.

Já são poucos os brasileiros que a viveram com participação ativa ou ao menos atentos aos fatos. Existem estudos de acesso limitado que a analisam em profundidade; mas, despercebida na mídia, nos livros de História e nos currículos escolares, é comum encontrar hoje brasileiros instruídos que nem sequer sabem que ela existiu. O artigo pretende divulgá-la, ainda que superficialmente, para os que se interessam pelos meandros tortuosos da História e não tinham à época da crise idade para acompanhá-la, ou nem eram nascidos.

Na Argentina o projeto de Itaipu sempre foi objeto de criticas restritivas. Para dirimi-las a Argentina insistia na sujeição do projeto a consulta aos países que compartilham o Rio Paraná, sob resistência do Brasil. Uma dessas críticas alimentou controvérsia que chegou a preocupar: a Argentina entedia que o projeto de Itaipu prejudicava o potencial hidrelétrico de Corpus, usina argentino-paraguaia a ser construída logo a jusante de Itaipu. Pelo menos essa razão era insistentemente vociferada, mas é difícil crer que ela (e outras razões menos usadas) justificasse(m) a tensão que se criou sem o estímulo da velha cultura da rivalidade, tanto assim que a usina de Corpus não foi construída até hoje.

A mídia argentina tratava o tema com veemência. Li artigos – fui adido naval em Buenos Aires na época – que aventavam até ação militar se a diplomacia não solucionasse a questão. Recordo-me de um que terminava com a frase “Itaipu é caso de guerra” – as razões técnicas ou Itaipu em si, por sua influência no quadro dos resíduos da anacrônica rivalidade regional...? No auge da crise a mídia argentina chegou a comentar a possibilidade de alagamento catastrófico de áreas do nordeste argentino se a barragem de Itaipu cedesse (sob a óptica míope da velha rivalidade: se o Brasil abrisse as comportas...).

É justo reconhecer, porém, que a exacerbação ocorria essencialmente na mídia, com reflexos no povo. Opiniões significativas expressavam frequentemente haver exagero na controvérsia. O governo autoritário de então se mantinha moderado, usava a argumentação argentina discreta e corretamente no nível diplomático. E as Forças Armadas, envolvidas na “guerra civil” interna e no imbróglio Argentina-Chile sobre a soberania territorial na região do Canal de Beagle, no sul da Terra do Fogo, que tangenciou o conflito, não pareciam empolgadas com esse “caso de guerra” irrealisticamente inflado.

No Brasil a mídia dava ao tema atenção secundária e o povo era praticamente indiferente a ele. Já a diplomacia se envolveu com empenho que lembra o tempo dos contenciosos de fronteira e de Rio Branco. Por seu lado, os militares, igualmente engajados, chegaram a formular um esboço de orientação para a atuação militar visando à defesa e segurança de Itaipu caso o empreendimento viesse a ser efetivamente ameaçado.

O contencioso não demorou a esgotar seu potencial de turbulência e foi resolvido diplomaticamente. Na verdade, nem sequer deveria ter existido no nível a que chegou: as razões argentinas explicitadas – a serem elas a motivação real da crise, imune às reminiscências do antagonismo do passado – admitiam a solução conciliada, como admitiram. O relacionamento Brasil-Argentina voltou a serenar e a cooperação foi hierarquizada acima da rivalidade, culminando com a criação do Mercosul e de uma instituição para o controle nuclear mútuo. Os governos Sarney e Alfonsín “liquidaram” a questão.

Passados 40 anos, uma revisão serena me sugere aventurar uma conjectura. Se as intenções que a alicerçam existiram de fato, elas foram atendidas, ao menos no Brasil.

Talvez o presidente Geisel tenha permitido – seria demais supor que tivesse estimulado – a inflação da questão para dar aos militares brasileiros uma preocupação profissional clássica, útil à abertura democrática então iniciada. O ocaso da guerra fria favorecia substituir a preocupação difusa que lhe era inerente pela supostamente concreta. Supostamente porque, superado o clima ouriçado, ficou claro que a tensão excedera a que teria sido razoável.

E o general Videla, chefe da Junta Militar que governava a Argentina, embora provavelmente compreendesse as limitações dos motivos que justificariam o nível da tensão criada, teria “permitido” o engajamento temperamental do povo porque convinha ao regime uma “distração patriótica” que ajudasse a amainar a turbulência interna. Beagle e Itaipu atendiam a isso (anos depois, se bem-sucedida, a aventura das Malvinas teria facilitado o fim harmonioso do regime autoritário; seu insucesso o fez desmoronar).

Vive-se hoje um relacionamento tranquilo e de cooperação, ainda que eventualmente abalado por percalços solucionáveis, comumente na economia. A rivalidade histórica vem se reduzindo e será em breve página virada se a economia superar seus tropeços conjunturais. Ou melhor, quase virada: no futebol a rivalidade é insuperável, não tem solução. Temos de conviver – e aparentemente gostamos – com esse tropeço “patriótico-esportivo”, que, felizmente, não impede o encaminhamento correto do essencial, na política e na economia.

*Almirante